domingo, 24 de dezembro de 2006

A melhor prenda de Natal

O Albano acordou na segunda-feira com o firme propósito de resolver de uma vez por todas o problema das prendas de Natal. Todos os anos sentia o mesmo dilema, sem saber o que oferecer na noite de consoada aos seus familiares. A esposa, essa sim, tinha jeito para tais coisas. Sempre estava mais disponível e não tinha preocupações que a incomodassem. O Albano era diferente. A empresa ocupava-o todos os momentos de todos os dias, ou não o obrigassem a isso a crise económica que domina o país e alguns conflitos com um ou outro trabalhador, que há sempre quem esteja insatisfeito com o ordenado que recebe, como ele tantas vezes dizia. Por isso, escasseava-lhe o tempo para pensar em prendas. Mas o Natal ainda o motivava para se mostrar generoso com quem mais o ajudava nos negócios e com os familiares mais próximos. Restos de uma educação cristã que havia recebido em criança e do ambiente solidário que a época natalícia propicia. 
As prendas dos mais directos colaboradores eram fáceis de encontrar. Mais uns dinheiros, para além do subsídio do Natal e do habitual salário mensal, e não era nada mau. Assim, receber quase três meses de uma só vez sempre será muito bom para que os trabalhadores bem comportados possam passar esta quadra mais folgadamente, costumava dizer o empresário, em jeito de quem gosta de mostrar a sua generosidade. Os outros, os que levam a vida a protestar, esses que aprendam a viver e para o ano logo se verá, sublinhava o Albano, quando alguém o criticava por só olhar para alguns. Agora, com a esposa, filhos e pai é que é mais complicado. 
Com os primeiros, porque ficam sempre descontentes e à espera de mais, e com o velho, internado num Lar da Terceira Idade, porque nunca reclama nada. Que está tudo bem, que os netos é que precisam, que há pobres a quem falta tudo, que há gente que passa fome, que há refugiados de guerra, que há imigrantes entre nós sem trabalho. Mas para ele, que tem cama, mesa e roupa lavada, nada mais é preciso, garantiu no ano passado ao Albano, quando lhe foi levar um livro como prenda de Natal. 
Um livro que o velho afinal nunca abriu. Olhos cansados, uma melancolia que o tem invadido, um gosto pela solidão que ninguém entende, diz a família a quem pergunta por ele. O pai do Albano, Alberto Ferreira, funcionário numa Repartição de Finanças durante uma vida, sempre foi uma pessoa amável e prestável. No fim da carreira, já ajudava a resolver problemas de filhos e netos de contribuintes que o viram entrar na repartição. Conhecia toda a gente e para todos os que se abeiravam dele tinha palavras amigas, entrecortadas pelas últimas anedotas políticas, de que era um exímio mas prudente coleccionador.
De política propriamente dita, mais nada sabia, nem nisso se metia. Depois da morte da mulher, aposentado e preparado para viver uns anitos tranquilos, sem aquela obrigação de levantar cedo para cedo chegar ao seu posto de trabalho, como mandam as regras de quem quer ser cumpridor, viu esboroar-se o sonho de uma reforma feliz. Ficou por casa, sozinho e com as suas recordações, a fazer tudo o que podia no dia-a-dia, para se entreter. Até se esmerou na cozinha, preparando uma vez ou outra uns petiscos, coisa que a esposa lhe recusava por causa do colesterol e da tensão alta. O filho único, a nora Albertina e os netos, Joel e Mariana, até gostavam de o ver assim entretido. Passavam a correr, mas passavam. 
Em certa altura, pressentiu que os netos iam por lá à espera de uns dinheiritos, talvez para as extravagâncias dos fins-de-semana. Mas um dia sentiu-se mal. Certamente pelos abusos da comida e por raramente sair de casa. A vida parada é muito prejudicial à saúde, como tanto ouviu dizer. E desse incómodo se queixou aos netos. O filho telefona-lhe então com a recomendação de que vá ao médico. Se não puder andar, diga. Alguém o há-de levar à consulta. Que não, disse o velho funcionário público aposentado. Os incómodos haviam de passar. 
O Albano pensou, num gesto que achou oportuno e até inteligente, que afinal o pai não estava bem sozinho. Levá-lo para sua casa, estava fora de questão. Os quartos que havia estavam todos ocupados. Deitá-lo a dormir numa sala não era solução. E como o velho sempre dissera que em sua casa não queria gente estranha a dormir, ao menos para o caso de ele ficar indisposto, então o melhor seria interná-lo num Lar. Sim, porque o Albano não tinha tempo para se preocupar com os incómodos de ninguém. Incómodos, e muitos, tinha-os na empresa. Mas como resolver o assunto? 
Em primeiro lugar, seria preciso convencer o velho, que era um bocado teimoso. Ficara assim com a passagem dos anos. Mas tinha de o convencer. E acabou por roubar um bocado de tempo à empresa. O pai reagiu. Que não era preciso. Que estava muito bem. Os problemas de doença resolvem-se e tudo volta à normalidade. Porém, o filho tanto insistiu e ameaçou que o velho acabou por ceder. E foi para um Lar, onde, como dizia toda a gente, os utentes eram bem tratados por trabalhadores competentes e diligentes. 
Os primeiros tempos foram de difícil adaptação, mas acabou por aceitar a rotina: levantar cedo, lavar-se e arranjar-se, como era seu costume, desde muito novo, tomar o pequeno-almoço com outros idosos, homens e mulheres, andar por ali pelos corredores para desentorpecer as pernas, ver televisão, almoçar, dormitar num sofá durante a tarde, assistir a jogos de mesa, que ele não apreciava porque se discutia por tudo e por nada, lanchar, voltar a olhar para a televisão, quantas vezes com indiferença, jantar e deitar. 
A família, que sempre o visitou durante as primeiras semanas, passou a telefonar. Os telemóveis facilitam a vida a muita gente. Depois tudo começou a rarear. E de um dia para o outro, nem para festas de aniversário era convidado, que a juventude se quer com a juventude e os pais com pessoas da sua idade e condição social. Nem os seus aniversários mereceram mais do que uns telefonemas, onde se trauteava o “parabéns a você”, para despachar mais depressa e sem mais conversa. 
O Albano andava bastante atarefado e envolvido nos negócios. Gostava de singrar na vida, como sempre o pai lhe ensinara. Era um homem honesto, como ele próprio se classificava. E não deixava de fazer gala disso em todas as circunstâncias. Aos filhos apresentava-se como empresário impoluto, compreensivo e justo, a imitar. Exemplo para todos, dizia. Mas naquela segunda-feira acordara preocupado com as prendas de Natal. Também para o pai que já não via há meses. 
Para a esposa e para os filhos era fácil, no fim de contas. A Albertina, como quem não quer a coisa, já havia apreciado um relógio de ouro, de boa marca, numa montra da cidade, numa tarde de domingo, depois de um almoço bem servido num restaurante afamado. O assunto estava resolvido. Para os filhos, ainda tinha dúvidas. O Joel, aluno de Letras, que não comprava livros e pouco lia, mas jogava “Playstation”, já tinha recomendado à mãe que gostava de fazer umas férias, curtas, nos Alpes. Era, portanto, de dinheiro, que ele precisava. E para a Mariana, estudante de Medicina, também o dinheiro lhe daria jeito, até porque andava a sonhar com um estágio na América, que o pai havia de pagar. Mas uns cobres, por fora, fazem um jeitão. E para o velho? Talvez fosse bom passar por lá, à hora da sesta, para ver se ele precisa de roupa. Como já não o visitava há muito tempo, resolvia assim o problema da visita natalícia. E foi. 
Perguntou pelo pai, na recepção. Que está no salão a ver televisão, como é habitual, informou solícita a empregada. O Albano chegou ao limiar da porta de entrada e olhou à volta. Mortos-vivos, quase todos, ali estavam. De olhos fixos na televisão, uns; de olhos parados no infinito, outros. Outros tantos, ainda, dormitavam. O pai estava neste grupo. Aproximou-se e abanou-o para mostrar que estava ali. O velho, com alguma tristeza no olhar, fixou-o. Não esperava o filho. Não esperava ninguém. Em resposta ao convite do filho, foi até ao jardim. E a conversa, quase só monólogo, interrompida há tanto tempo, iniciou-se com dificuldade. 
O Albano falou dos seus muitos negócios, das suas vitórias sobre a crise económica da maioria, dos seus projectos para se posicionar entre os grandes empresários, e da casa em construção que vai ser um autêntico palacete, rodeada de jardins e com piscina, para fugir ao stresse de quando em vez. Falou das muitas ocupações da Albertina, com o governo da casa e a aturar as mulheres-a-dias, dos estudos do Joel e da Mariana, que hão-de ser profissionais de sucesso.
Falou do Natal, que é, como habitualmente, uma festa da família. Disse que este ano também não o podia convidar, porque a festa iria prolongar-se, como de costume, pela noite dentro, e depois não havia lugar para o pai dormir. Nem aguentaria tantas horas acordado. E que estava ali a visitá-lo para saber do que precisava. Roupa nova mais quente para o Inverno, alguns livros para ler, uma televisão para o quarto, para não estar ali com os outros. Sabia que comia bem, que estava a ser assistido pelo médico do Lar, que tomava todos os medicamentos que lhe eram receitados. O pai que dissesse do que é que necessitava. – Até ver, não preciso de nada. 
Toda a gente por aqui me trata bem, como se fora pai e avô de todos. Mas vou pensar e depois direi. – Então, até um dia destes – disse o Albano, enquanto se levantava. E acrescentou: – Na empresa devem estar preocupados com o meu atraso. Fico à espera do seu telefonema. Adeus, pai. Deu meia volta para se retirar, enquanto apertava a mão ao velho aposentado, num gesto frio. – Olha, filho! Pensando bem, a tua visita foi a melhor prenda de Natal que me podias oferecer… – murmurou o Alberto, com voz trémula, para que ninguém o ouvisse.

Fernando Martins

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