Quem vê caras,
também pode ver corações
Contrario o ditado popular ao viver a experiência de ter visto caras e, por detrás delas, corações felizes, corações esperançosos e, também, corações angustiados. Foi na Convenção das Famílias Anónimas, ali na Reitoria da Universidade. Experiência já vivida há anos, e que me levou, de novo, ao encontro da paz, da dor e da esperança.
Pais e mães, irmãos e irmãs, que apenas se identificam pelo seu primeiro nome, trazem consigo a memória de um mundo de sofrimento de anos, tantos quantos a toxicodependência de um filho ou de outro familiar fez, ou ainda faz sangrar e inundar de lágrimas os seus lares. Uns, já libertos do terrível pesadelo, manifestam a alegria e gratidão pelo êxito, finalmente alcançado. Outros, com os seus doentes a caminho da recuperação, alimentam, mais uma vez, a incontida esperança do resultado, há tanto tempo almejado. Outros, ainda em situação de dor, porque a escravidão permanece, não escondem, apesar do ambiente reconfortante, a noite escura da dolorosa crucifixão.
Um clima sereno e amigo, o da Convenção. Os cumprimentos não são protocolares, partilha-se vida, recebem-se estímulos, alimenta-se a esperança de melhores dias.
Quando se fala de dor, também se fala de esperança. Quando se fala de sofrimento, também se fala de coragem. Quando se narram derrotas, também se narram vitórias.
Os trabalhos iniciam-se com a “Oração da Serenidade”, rezada em coro com profunda convicção. Invoca-se o “Poder Divino”, ponto de encontro de todos, que nunca se fecha à oração de um pai e de uma mãe que imploram, agradecem ou louvam. Ninguém se sinta forçado nas suas convicções, mas antes reforçado na sua confiança.
Estes pais fazem, também, no dia a dia, os doze passos que já libertaram os filhos e são, para si próprios, um caminho gerador de paz, força interior, estímulo a prosseguir numa luta que não admite cansaços nem tréguas.
O testemunho da alegria e do sofrimento, o entusiasmo sereno de quem se reconhece por uma história igual, as vivências partilhadas com total confiança, o respeito mútuo, tudo a ajudar estas famílias a que vivam um clima de enriquecedora solidariedade.
Quando vemos no nosso caminho a verdade dos sentimentos que livremente se exprimem, ficamos mais comprometidos na luta contra as causas do mal.
A droga e seus tentáculos são monstro forte para se enfrentar a sós. Na união aberta de muitos, pode residir a força que exorciza os medos do monstro. Porém, o mal alastra.
Há fardos de droga a dar à costa e a cair nas mãos da autoridade. Enchem prisões os sinais visíveis de um negócio hediondo, sujo e mortífero, que se faz a frio, se premedita, enriquece criminosos e destrói inocentes. O crime atinge muitos, sem que se veja modo de o conter. Não faltam interesses o fomentá-lo. Se fosse visível a olhos humanos a destruição que daí resulta, veríamos rios de sangue e lágrimas, ouviríamos gritos, lancinantes e incontidos, de pais, irmãos e amigos e das vítimas de um paraíso efémero.
Como é possível que os poderes cruzem os braços ante este poder do mal? Na rotina que se nos cola, ficam deste horror de miséria e de dor as famílias anónimas com a sua luta e esperança, as notícias já raras, porque deixaram de ser notícia, os escândalos que o dinheiro não consegue abafar. Mas fica, também, a multidão dos que ajudam doentes e famílias, de mistura com outros que, por vezes, os exploram impunemente. Depois, ficam ainda as soluções que nada solucionam e sobre as quais se diz muito, porque significam pouco. Vão-se vendendo ilusões com salas de chuto, seringas nas prisões, metadona quanto baste, entrevistas e pareceres de sábios e de eruditos. Uns ganham com tudo isto. Muitos são, porém, os que perdem. É assim. Uma droga.