quarta-feira, 8 de novembro de 2006

Um artigo de António Rego

Não matarás
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Vendo do nosso lado, ninguém morre de amores pela figura de Sadam Hussein. Como chefe, político, militar, interlocutor e, nos últimos tempos, como estratega ou defensor das próprias causas. Antes de cair a sua estátua em Bagdad já parecia desmoronado o deus com pés de barro, mais frágil do que todas as suas arrogâncias faziam supor. Conhecemos o homem público, o detestado por muitos e por muitos amado. Mal sabemos quanto de verdade e teatro, política e circunstância havia nas suas palavras e imagens. Chegavam-nos apenas poeiras dum ditador que construiu o seu reinado para venda de imagem. Mas isso acontece com quase todos os chefes de quem se conhecem os adereços e se ignora a substância. Desde aquele dia em que lhe abriram a boca para observarem os dentes, com uma sequência de imagens humilhantes que foram vendidas ao planeta, nos fomos apercebendo que, por trás de todas as máscaras, havia um homem que também tinha medo e que queria salvar a vida. Tinha caído a estátua e a pessoa. Começou um processo de julgamento de que conhecemos algumas ramas aligeiradas que nos quiseram oferecer. Muitos, durante esta operação de acusação e defesa, foram abatidos. Vieram ao de cima alguns crimes cometidos pelo ditador que nem sabíamos em pormenor ou mesmo se eram os crimes mais graves dum longo regime de opressão. Pode agora acorrer-nos o sentimento vago de converter a repulsa em compaixão, como somos capazes de enganar a polícia para salvaguardar o criminoso. Tem acontecido com os faróis na estrada a avisar os eventuais transgressores, como na fácil compaixão pelo assaltante. Acontecerá agora com Hussein pelo simples facto de ter sido condenado. Mas foi condenado a pena de morte. E entramos num terreno ético, escandalosamente discutível, uma vez que se trata duma vida humana – para além de inocente ou criminosa – que é aniquilada por outro ser humano.
A condenação à morte duma pessoa e a sua execução não é nem mais leve nem mais grave que um aborto praticado sobre um ser humano vivo a que, por comodidade se chamará feto, gérmen ou embrião. Custa a crer que haja quem julgue inocente um caso e criminoso outro. Ninguém tem poder sobre a vida de ninguém. Nem a mãe é dona do seu ventre. Nem a humanidade dona dum ser que gerou.

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