domingo, 19 de novembro de 2006

UM ARTIGO DE ANSELMO BORGES, NO DN

A mentira da morte
e a morte da mentira
Terminou ontem no Porto um colóquio sobre "O Homem e a(s) Mentira(s)". Coube-me falar sobre o tema em epígrafe.
Afinal, quem mente: a morte ou o Homem?
Ninguém sabe o que é morrer. Mesmo que tenhamos visto alguém morrer, foi de fora. Vimos alguém ainda vivo. Depois, é uma ausência.
Ninguém sabe o que é estar morto. O que é estar morto para o próprio morto?
Dizer, perante o cadáver do pai, da mãe, do amigo, da amiga, do filho, da filha, do irmão, da irmã: o meu pai está aqui morto, a minha mãe está aqui morta, o meu amigo, a minha amiga, o meu filho, a minha filha, o meu irmão, a minha irmã está aqui morto, está aqui morta, não tem sentido, pois o que falta é precisamente o sujeito. Eles não estão ali. Se estivessem, não estavam mortos. Onde estão então? Há aquela pergunta infinita que Tolstoi coloca na boca de Ivan Ilitch moribundo: onde é que eu estarei, quando cá já não estiver?
Dizer que os levamos à sua última morada é outro contra-senso da linguagem. Quem é que se atreveria a enterrar ou a cremar o pai, a mãe, o filho, a filha, o amigo, a amiga, o irmão, a irmã?
E também não faz sentido afirmar que vamos ao cemitério vê-los. Nos cemitérios, com excepção dos vivos que lá vão, não há ninguém.
Mas então o que há nos cemitérios, para que a sua profanação seja, em todas as culturas, um crime hediondo? Há a memória. Mas o que sobretudo há é o que nos faz homens: um in-finito ponto de interrogação, que vem ao nosso encontro como pergunta in-finita: o que é ser Homem?; porque é que há algo e não nada? A morte coloca-nos perante o abismo do nada. E o que é que se diz sobre o nada?
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