Ainda não refeitos do choque provocado pelas circunstâncias que terão rodeado a morte e o desaparecimento do corpo da Joana, somos agora confrontados com o homicídio, também em condições de grande violência, da Vanessa. Indignámo-nos todos, genuinamente, com ambas as tragédias.
Porque roubaram a vida a dois pequenos seres que tinham pela frente uma existência inteira. Porque os actos praticados se revestem de uma maldade inimaginável. Porque os alegados responsáveis são familiares próximos, justamente aqueles de quem se esperaria que tudo fizessem para proteger as crianças a seu cargo.
Como normalmente sucede nestas ocasiões, o tema da violência sobre as crianças tornou-se objecto central das discussões.
Fizeram-se reportagens televisivas, escreveram-se artigos nos jornais, produziram-se análises variadas, promoveram-se debates, recordaram-se casos anteriores de contornos similares, alertou-se para o número elevado de jovens em risco.
Infelizmente, porém, sempre que cada novo crime ocorre constata-se que pouco ou nada mudou.
Penso, por isso, que é cada vez mais urgente que sejamos capazes de compreender os diversos planos em que temos de agir, pois só assim conseguiremos diminuir drasticamente os níveis da violência infantil.
O primeiro plano é, evidentemente, o do Estado. E não apenas pelo facto de uma das suas funções essenciais ser justamente a garantia da segurança das pessoas, em particular das mais vulneráveis.
É que um dos aspectos que mais me impressionaram nestas situações foi o registo burocrático do seu tratamento.
Desde a remessa de papéis de um lado para o outro aos sistemáticos atrasos e adiamentos, aos deficientes canais de comunicação entre os serviços públicos responsáveis, tudo aconteceu.
Em consequência, ficámos com a sensação, porventura injustamente, de que em Portugal os assuntos relacionados com a protecção de menores em risco constituem uma prioridade de segunda linha.
Devemos, assim, exigir ao Estado que se concentre mais e mais naquilo que são as suas tarefas indelegáveis em vez de, como tantas vezes sucede, se intrometer onde não é necessário nem chamado.
E o combate à violência de que as crianças são alvo é, certamente, uma dessas tarefas indelegáveis.
O segundo plano é o da sociedade. Embora reconhecendo que o Estado tem que desempenhar um papel central, não podemos cair no erro habitual de transferir para ele todos os encargos.
Uma sociedade que regista um tão elevado grau de desrespeito pelos direitos fundamentais das crianças é, evidentemente, uma sociedade doente. Nessa medida, cada um de nós deve ser convocado para o combate a estes dramas.
Não nos demitindo das nossas responsabilidades cívicas, ficando atentos aos sinais, intervindo junto das entidades competentes sempre que isso se justifique.
O terceiro plano tem que ver com a política criminal. Sei que é politicamente correcto elogiar, no plano dos conceitos e da medida das punições, a legislação penal portuguesa.
Por mim, tenho fundadas dúvidas acerca de muitas soluções vigentes, que frequentemente parecem mais preocupadas com os que cometem um crime do que com as vítimas ou com a defesa da própria sociedade.
E, em casos de homicídios de crianças, ainda para mais envolvendo a utilização de elevada violência, vale a pena ponderar seriamente se a pena aplicável é adequada à gravidade dos factos praticados.
Uma conclusão me parece, porém, impor-se.Desta vez, as coisas não podem mais permanecer na mesma.
Devemos isso aos milhares de crianças em risco, pois não podemos nunca esquecer que aquilo que para a generalidade de nós é uma estatística, para cada uma dessas crianças representa um martírio quotidianamente repetido.
Mas devemos isso também, muito especialmente, à memória da Joana e da Vanessa.