Crónica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias
Conta-se que, uma vez, estava um miúdo com a mãe, junto ao cadáver da avó. A mãe explicou ao filho: "Vês? Agora, o corpo vai para a Terra, a alma foi para Deus. Quando eu morrer, o meu corpo vai para a Terra e a minha alma vai ter com Deus. Depois, quando tu morreres, também vai ser assim: o teu corpo vai para o cemitério; a tua alma vai ter com Deus." E o miúdo, aflito, perguntou: "E eu?"
Esta pequena história, na sua aparente ingenuidade, ilustra bem todo o enigma da constituição humana. O pensamento enveredou frequentemente pelo dualismo, que quer exprimir uma tensão vivida: eu sou um corpo que diz eu, mas ao mesmo tempo penso-me como tendo um corpo, pois o eu fontal parece não identificar-se com o corpo. Parece haver no Homem um excesso face ao corpo, experienciado, por exemplo, na possibilidade do suicídio: eu posso matar-me. Mas, por outro lado, eu não sou uma alma que carrega um corpo, à maneira de uma coisa que eu tivesse. Vivo-me desde dentro como sujeito corpóreo, um corpo-sujeito e matéria pessoal. O meu corpo sou eu mesmo presentificado, é a minha visibilização, sou eu próprio voltado para os outros. Numa concepção dualista de alma e corpo, os pais não seriam realmente pais dos filhos, mas apenas de um corpo que transporta ou é transportado por uma alma que viria de fora...