Nos cemitérios, o que há?
Apesar de a morte hoje se ter tornado tabu, muitos nestes dias passaram pelos cemitérios. E a pergunta é: que foram lá fazer? Quando alguém está concentrado num cemitério perante a campa de um familiar, de um amigo, está a olhar para onde? E o que é que vê realmente?
Há talvez algumas imagens entrecortadas que lhe passam de modo fugaz pela mente. Mas, quando olha, verdadeiramente absorto, embora talvez com os olhos muito abertos para ver, o que realmente lhe aparece é simplesmente e só um abismo sem fundo e sem fim, um vazio ilimitadamente aberto
Apesar de a morte hoje se ter tornado tabu, muitos nestes dias passaram pelos cemitérios. E a pergunta é: que foram lá fazer? Quando alguém está concentrado num cemitério perante a campa de um familiar, de um amigo, está a olhar para onde? E o que é que vê realmente?
Há talvez algumas imagens entrecortadas que lhe passam de modo fugaz pela mente. Mas, quando olha, verdadeiramente absorto, embora talvez com os olhos muito abertos para ver, o que realmente lhe aparece é simplesmente e só um abismo sem fundo e sem fim, um vazio ilimitadamente aberto...
A morte é o mistério pura e simplesmente... Perante ela e tudo o que se lhe refere, é como se caíssemos num precipício, onde se estilhaça a capacidade de pensar... Ninguém sabe o que é morrer. Que instante é esse o da morte, mediante o qual se deixa de pertencer ao mundo e ao tempo? Mesmo que assistamos à morte de alguém, é de fora que o fazemos... Ninguém sabe o que é estar morto. Diante do cadáver do pai, da mãe, do filho, do amigo, do marido, da mulher, não tem sentido dizer: o meu pai está aqui morto, a minha mãe está aqui morta, o meu amigo está aqui morto, o meu marido está aqui morto, a minha mulher está aqui morta... De facto, eles não estão ali... Também é por pura ilusão de linguagem que dizemos que levamos o pai, ou a mãe, ou o filho, ou o amigo, ou a mulher, ou o marido à sua última morada... Como não podemos dizer, quando vamos ao cemitério, que os vamos visitar... Nos cemitérios, com excepção dos vivos que lá vão, não há ninguém.
Pergunta-se então: porque é que é um crime nefando em todas as culturas e sociedades a violação de um cemitério se lá não há ninguém? Afinal o que é que está nos cemitérios?
Nos cemitérios, o que há é uma incontível e inapagável interrogação: o que é o Homem, o que é ser-se humano? O que há nos cemitérios é a afirmação de que, seja como for, a antropologia não é redutível a um simples capítulo da zoologia...
Afinal, para onde foram os mortos? Não será que, como acontece nas guerras, andam perdidos, mas um dia havemos de encontrá-los e encontrar-nos? Para onde vão os mortos? Para o nada? Mas, como perguntava o filósofo Bernhard Welte, que nada é esse? O nada vazio e nulo ou o nada enquanto véu que oculta a realidade verdadeira, como quando entramos num espaço de breu e dizemos: aqui, não vejo nada, o que não significa que lá não haja nada, pois pode até acontecer que lá se encontre o tesouro maior?... Para onde vão os mortos? Para a noite total ou, pelo contrário, para a luz plena, de tal modo luz que para nós é noite, como quando, olhando para o sol de frente, ficamos cegos pelo excesso de luz? No final, está a esperança.
Anselmo Borges no DN