domingo, 21 de abril de 2024

Declaração sobre a dignidade humana. 1

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias

No passado dia 8, o Vaticano publicou, com a aprovação do Papa Francisco, a Declaração Dignitas infinita (Dignidade infinita), um documento elaborado ao longo de 8 anos pelo Dicastério da Doutrina da Fé, presidido desde 2023 pelo teólogo argentino cardeal Victor Manuel Fernández. Nela, que lembra que este ano se celebram os 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, onde a palavra dignidade aparece cinco vezes e é declarada como “intrínseca a todos os membros da família humana” e que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, tudo gira, como diz o título - Dignidade infinita - à volta da dignidade humana, “uma questão central no pensamento cristão”, como sublinhou o prefeito do Dicastério. De facto, o que é o Evangelho senão uma notícia boa e felicitante: Deus é bom, Pai e Mãe, tendo todos os homens e mulheres a dignidade soberana de filhos de Deus?
Esta dignidade é “ontológica”, portanto, inerente ao ser humano de modo intrínseco e inalienável em qualquer circunstância, pertence-lhe pelo simples facto de existir. É concedida por Deus que, como diz o livro do Génesis, “criou o Homem à sua imagem e semelhança”, imagem indelével. “A Igreja, à luz da Revelação, reafirma e confirma absolutamente a dignidade ontológica da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus e salva em Jesus Cristo”, “dignidade inalienável que corresponde à natureza humana, para lá de qualquer mudança cultural”, “um dom recebido”, presente “numa criança não-nascida, numa pessoa inconsciente, num ancião em agonia”. “A Igreja proclama a igual dignidade de todos os seres humanos, independentemente da sua condição de vida ou das suas qualidades.” Jesus identificou-se com os últimos e ao ressuscitar revelou-nos que “o aspecto mais sublime da dignidade do Homem consiste na sua vocação à comunhão com Deus.”
Também pela razão o ser humano conclui pela sua dignidade inviolável: quando, por exemplo, reflecte sobre a liberdade - auto-possui-se, é senhor de si, um animal que tem linguagem (zôon lógon échon) e, por isso, animal político (zôon politikón), como bem viu Aristóteles: capaz de distinguir o bem e o mal, o conveniente e o inconveniente, o justo e o injusto, - e sobre si mesmo: auto-consciente, consciente de que é consciente, afirmando-se como um eu único e perguntando ao infinito pelo Infinito, Deus...
Mas, na Declaração insiste-se na fundamentação na fé. E só posso estar de acordo com o teólogo José L. González Faus, quando escreve que, embora melhorável - ao longo da exposição também levantarei interrogações a confirmá-lo -, o documento “constitui uma fundamentação de e um apelo a essa tarefa hoje tão urgente e comum a crentes e não-crentes: a fé na absoluta dignidade do ser humano e o imperativo categórico de trabalhar pelo respeito dessa dignidade como a tarefa mais importante no mundo de hoje”, contribuindo, assim, para “um mundo menos cruel e menos triste”.
O Vaticano publicou, com a aprovação do Papa Francisco, a Declaração Dignitas infinita (Dignidade infinita), documento que lembra que este ano se celebram os 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, onde a dignidade é declarada como “intrínseca a todos os membros da família humana”. Foto: Alberto Pizzoli / AFP
Desgraçadamente, como sublinhou o cardeal prefeito do Dicastério, “a dignidade humana não é algo que a Igreja tenha reconhecido sempre com a mesma clareza: houve um crescimento na compreensão. Acrescenta-se, aprofunda-se a compreensão, notamos que no interior da própria Bíblia há uma explicação crescente.” E lembrou, como exemplo, que, se em 1452 o Papa Nicolau V numa carta aos reis de Portugal tinha justificado e até ordenado a escravatura - cito parte da Bula, que constitui, no meu entender, uma das maiores vergonhas da Igreja: “Nós... concedemos faculdade plena e livre para invadir, conquistar, combater, vencer e submeter quaisquer sarracenos e pagãos e outros inimigos de Cristo, em qualquer parte que estiverem, e os reinos, ducados principados, domínios, possessões... e reduzir a escravidão perpétua as pessoas dos mesmos...” -, Paulo III, em 1537, lançou a excomunhão sobre quem a defendia, pois tratava-se “de humanos”.
Para sublinhar que nunca se perde a dignidade intrínseca, o documento apresenta a dignidade segundo quatro dimensões: precisamente a dignidade ontológica; a dignidade moral, que se refere à liberdade e ao seu exercício; a dignidade social, que se refere às condições de vida; a dignidade existencial, em conexão com o modo como nos apercebemos da própria dignidade: “Hoje fala-se cada vez mais de uma vida ‘digna’ e de uma vida ‘indigna’; referimo-nos a situações propriamente existenciais, por exemplo, o caso de uma pessoa que, embora nada de essencial para viver lhe falte, tem, por diversas razões, dificuldades para viver na paz, na alegria e na esperança.”
Referindo-se a esta “distinção entre a dignidade ontológica que nunca se perde e outra social, moral e existencial que podem crescer ou diminuir com as circunstâncias da vida”, o cardeal esclarece: “Posso ter uma vida indigna, mas nunca perco a inalienável dignidade humana. Os outros podem fazer com que eu leve uma vida indigna, mas nunca me tiram a dignidade por ser humano: a dignidade é a mesma para alguém nascido na Itália ou na Etiópia, em Israel ou em Gaza. É exactamente a dignidade inalienável. Não há nenhuma circunstância que faça com que uma pessoa tenha menos valor, a sua dignidade permanece inviolável em qualquer contexto, situação, cultura.”
Este esclarecimento é importante, para não dizer decisivo, pois chave essencial de leitura da Declaração é ver a dignidade, sempre, “para lá de toda a circunstância”. Continuaremos.

Anselmo Borges no  DN

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