Crónica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias
Em todas as licenciaturas, há uma cadeira que se imporia: Antropologia, pois é sempre o ser humano que está em causa.
1. E quando falamos do ser humano, temos de ter sempre em consideração que se trata de uma unidade em tensão. Assim, ele apareceu na história da evolução e, por isso, é preciso dizer que ele vem da natureza, mas, ao mesmo tempo ele é na natureza, pois é nele que a natureza e a evolução sabem de si. Ele é no tempo: vem do passado, vive no presente e projecta-se no futuro. Ele é simultaneamente impulso, emoção e razão. É consciente, consciente de que é consciente, mas mergulha no inconsciente, o isso em nós sem nós, de tal modo, que por vezes perguntamos: eu fiz isso?, aí não era eu. Limitado, o ser humano é uma abertura ilimitada, nunca estamos suficientemente feitos, estamos abertos a tudo, à Transcendência.
2. Deste modo, encontramos o cuidado. Cuidaram de nós e nós devemos cuidar: cuidar de nós (desde o que comemos ao repouso...), cuidar dos outros (só sou eu face ao tu), cuidar da natureza (há uma ligação estreita entre a saúde e o ambiente), cuidar do Sagrado, de Deus.
G. K. Chesterton |
3. G. K. Chesterton escreveu: "A coisa mais poética, mais poética que as flores, mais poética que as estrelas, a coisa mais poética do mundo é não estar doente." Aqui, porque por vezes, nos sentimos mal e caímos doentes, encontramos a medicina. Precisamos de alguém com conhecimentos e técnica que nos ajude, mas no quadro de um conceito holístico de saúde. Quando vamos ao médico, esperamos evidentemente encontrar alguém que perceba do assunto, mas que simultaneamente nos trate como pessoas e atendendo àquela unidade tensa já exposta. O encontro médico não pode reduzir-se a este quadro: de um lado um técnico e do outro uma máquina desarranjada, pois deve ser um pacto entre alguém que sabe e outro alguém que precisa de ajuda. Há estudos que mostram como uma boa relação de confiança entre o médico e o doente é fundamental para a cura - em latim, cuidado diz-se cura.
Quando estamos atentos às palavras, elas dizem o essencial. Clínica vem do grego klínein, que significa inclinar-se: o clínico inclina-se sobre alguém em necessidade. Hospital vem de hospes, hóspede: é como tal que o doente deve ser tratado.
4. Sobre a importância decisiva da saúde dizem as nossas saudações quotidianas quando encontramos alguém, e isso nas várias línguas: "Como está, como estás?" A palavra valor vem do latim: vale!, a palavra usada pelos romanos para saudar alguém, também na despedida: "Passa bem!". É essencial um conceito holístico de saúde - do grego hólon, que significa o todo, não enquanto soma das partes, mas o todo que é mais do que essa simples soma.
Vamos de novo às palavras e ao seu étimo, e encontramos o elo entre a espiritualidade, a religião e a saúde. A palavra medicina tem na sua base um radical med - que dá origem a moderação, meditação e medicina. Saúde provém do latim salus, salutis, na base também de salvação. E saudar vem de salutem dare. Em inglês, saúde diz-se health e santo diz-se holy, em conexão com the whole (o todo); em alemão, temos heilig para santo e heilen significa curar. Em português, de uma pessoa com saúde dizemos que está são, a mesma palavra que usamos para São João e São José...
E vamos ao encontro de estudos científicos que mostram uma relação globalmente positiva entre a religião e a saúde - repito: significativamente, o étimo latino de saúde e salvação é o mesmo: salus, salutis. Apenas alguns exemplos - quem estiver interessado poderá procurar outros e um estudo mais aprofundado da questão no meu mais recente livro, O Mundo e a Igreja. Que Futuro?
Em 158 estudos médicos acerca do efeito da religião na saúde, 77% fazem menção de um efeito clínico positivo.
Mario Beauregard, investigador de Neurociências na Universidade de Montréal, escreve que se acumulam provas consideráveis que mostram que as experiências religiosas, espirituais e/ou místicas "estão associadas a melhor saúde física e mental." Na sua obra The Spiritual Brain, cita 158 estudos médicos sobre o efeito da religião na saúde, concluindo que 77% fazem menção de um efeito clínico positivo. Outro estudo mostrou que "os adultos mais idosos que participam em actividades religiosas pessoais antes do aparecimento dos primeiros sinais de handicap nas actividades do quotidiano têm mais esperança de vida do que os que não o fazem." O neurocientista Miguel Castelo-Branco, da Universidade de Coimbra, escreveu: "A medicina baseada na evidência tem sugerido que a religiosidade e a espiritualidade influenciam de forma efectiva o desenlace em muitos domínios clínicos, incluindo a dependência de drogas... A experiência espiritual é benéfica para a saúde humana e o tipo de bem-estar psicológico que proporciona pode ser activamente procurado."
Neste contexto, encontramos, evidentemente, a questão fulcral da religião e do sentido. Foi concretamente Viktor Frankl, sobrevivente de Auschwitz e fundador da chamada Terceira Corrente de Psicoterapia de Viena, que sublinhou, a partir aliás também das suas terríveis experiências dos campos de concentração, a relação entre o sentido e a cura. O que move o ser humano é o sentido, de tal modo que tudo suportará, se encontrar um sentido, e a religião tem a ver precisamente com o sentido de todos os sentidos, o Sentido último. Na busca de Sentido Último, a pessoa, inconscientemente, procura Deus - Der unbewusste Gott (O Deus inconsciente) é uma das suas obras.
Escusado será dizer que é essencial a imagem que se tem Deus. Que Deus?
Anselmo Borges
no Diário de Notícias
Padre e professor de Filosofia.