sábado, 10 de junho de 2023

Parecer, aparecer, ter, poder... E depois?

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias

Corremos até o risco de nos afundarmos numa civilização do aparecer e do parecer, que já não procura o sentido da autenticidade da existência.

Afinal, não há padrões absolutos de beleza: ser bonito é relativo. Hoje, procura-se a elegância até aos limites da anorexia. Mas nalgumas aldeias do interior ainda hoje os mais antigos dirão a uma pessoa jovem mais corpulenta vinda da cidade: "Como está bonita!"... Segundo o dito: gordura é formosura. É que, tradicionalmente, não era necessário cultivar a elegância, pois a carestia, o trabalho braçal duro e a miséria encarregavam-se de impor a magreza por vezes esquelética. Cá está: os gordos, em princípio, eram ricos. Nesses tempos também, a maioria das pessoas trabalhava nos campos, de sol a sol: a pele era fatalmente tisnada. Por isso mesmo, a beleza andava associada à pele branca. Ficaram famosos os banhos com leite de burra na antiga Roma. A alvura da pele significava ser senhor, estar em casa, não precisar de trabalhar no campo...
Depois, com a revolução industrial, a maioria começou a trabalhar em grandes fábricas e escritórios, longe do sol. Por isso, dominava a pele branca. A pele bronzeada tinha então agora a ver com férias e a possibilidade de viajar...
Na base destes comportamentos e critérios está o impulso de marcar a diferença e impor-se aos outros. É daí que surge também a importância dada à marca do carro, ao tipo de cartão de crédito, ao modelo do telemóvel... Mesmo as crianças exigem vestir segundo a marca a, b ou c, a ponto de um miúdo se ter virado para os pais que não podiam comprar roupa de marca: era preferível ter tido outros pais mais ricos...
Também já não se escolhe o local de férias tanto em função do descanso, da tranquilidade, do repouso, da cultura, como da publicidade, da moda, do poder contar aos amigos, aos vizinhos, aos colegas de trabalho, deslumbrando-os..., a ponto de a oração mais frequente antes de se partir para férias ser: Senhor, que, quando regressarmos, encontremos alguém disponível para contemplar as fotografias e os vídeos que fizermos!...
É preciso parecer e aparecer. Corremos até o risco de nos afundarmos numa civilização do aparecer e do parecer, que já não procura o sentido da autenticidade da existência...
A filosofia nasceu da necessidade constitutiva do ser humano de distinguir entre a opinião e a verdade, entre o parecer e o ser, entre a aparência e a realidade. O que é a realidade verdadeira? Também a religião só se compreende na medida em que se confronta não com aparências, mas com a realidade e a verdade. Por exemplo, os místicos sempre perceberam que a realidade mais profunda, eterna, não se confunde de modo nenhum com o banal, a superfície das coisas: o visível é a visibilidade do invisível e é lá no invisível que se encontra o verdadeiro, o bem, o belo, a eternidade e o que salva. Por isso, Jesus preveniu: "De que vale ao Homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a sua vida?". Como disse também recentemente numa entrevista à Visão o best-seller Yuval Noah Harari, somos indomáveis, porque "por um lado somos mais poderosos do que qualquer outro animal do mundo, por outro, isso também tem que ver com o facto de sermos insaciáveis. Não interessa o que tenhamos conseguido alcançar, queremos sempre mais. Se temos um milhão, queremos dois milhões, se temos dois milhões, queremos dez milhões. O mesmo em relação ao poder: nunca estamos satisfeitos com o que temos porque, na verdade, não sabemos como traduzir esse poder em felicidade. Somos milhares de vezes mais poderosos do que éramos na Idade da Pedra, mas não somos significativamente mais felizes. Se não aprendermos a parar, a desacelerar, o mais provável é que nos destruamos a nós, e a todo o ecossistema."
Hoje desconfia-se da razão e da possibilidade de alcançar a verdade: estamos, mais uma vez, sob o comando da banalidade e a ameaça do relativismo céptico e da retórica sofística, em que o decisivo já não é a verdade e o bem, mas o êxito a qualquer preço, a conquista a todo o custo do dinheiro, do prazer, da fama, a procura desenfreada do poder, da notoriedade, do triunfo social e mediático: quem não aparece não existe. E não se teoriza até sobre a pós-verdade? Ah! E as redes sociais!... e o constante dedar... E, assim, como encontrar a verdade? Na vertigem do dedar, um diz uma coisa, outro diz o seu contrário, o terceiro nem uma coisa nem outra... Mais: hoje estão aí, cada vez mais gigantescos, o poder e a ameaça da Inteligência Artificial. De facto, numa conversa online, já começa a não se poder ter a certeza de que do outro lado se encontra outro ser humano ou um bot. Os perigos são tantos e de tal grandeza que investigadores, incluindo criadores eles próprios da Inteligência Artificial, estão a chamar a atenção para o perigo do fim da civilização humana, pedindo, por isso, uma moratória nos avanços desta tecnologia. O linguista Noam Chomsky advertiu: "É o ataque mais radical" ao pensamento, à inteligência. De novo Harari: a IA "é uma bomba atómica para a política", que pode acabar com a democracia. O Papa Francisco, representantes do G7 e a União Europeia esperam encontrar, antes que seja tarde, acordos para travar perigos e ameaças incontroláveis.
Pelo caminho da vulgaridade, da falta da busca da verdade, com a ameaça nuclear e ecológica, pondo fim ao humanismo, o que vai restar? Afinal, o que queremos? Não precisaremos de parar, reflectir, para podermos ir ao encontro do essencial? E onde se encontrará o essencial?

Anselmo Borges no DN

Padre e professor de Filosofia.
 Escreve de acordo com a antiga ortografia

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