Crónica de Anselmo Borges
no Diário de Noticias
Anselmo Borges |
Continuo o texto da semana passada, partindo de uma conversa com Fátima Lopes na televisão.
A partir do que explicou, como é que devemos interpretar o facto de a Igreja Católica ter credenciado uns quantos padres como estando habilitados para fazer exorcismos? Isso não faz sentido.
Sim, o diabo não existe, os exorcismos não fazem sentido. O que, na minha opinião, deve haver é uma espécie de pacto médico-pastoral, como na Alemanha. Às vezes, aparecem-me doentes que eu não posso curar porque não sou médico, mando-os para o psiquiatra, como também há psiquiatras que me mandam doentes que eles ajudam mas que têm também problemas do foro religioso, e ajudamo-nos mutuamente. É isso que é preciso fazer. Mas não atribuir ao diabo aquilo que, efectivamente, é de outra ordem.
Repare: logo no começo do Evangelho segundo S. João, lê-se: "No princípio era o Logos e o Logos era Deus". Que é que isso significa? Que Deus é razão, Deus é inteligência e tudo foi criado pelo Logos, por isso é que o mundo é legível do ponto de vista científico. Porque, se foi criado pela razão, deve ser razoável e, portanto, vamos investigá-lo, mas o Novo Testamento diz também que Deus é amor e amor incondicional. Então, Deus é inteligência, é razão e é amor. São estes dois princípios que nós devemos unir para avançarmos, ajudarmo-nos a nós e ajudarmos os outros. Frequentemente, na Igreja, a razão não está, infelizmente, muito presente.
Então acha que é por isso que ainda se continua a habilitar alguns para fazer uma coisa com que não concorda, que acha que não faz sentido?
Sinceramente, julgo que os padres devem estudar um pouco mais para perceber um pouco melhor o Evangelho. Por vezes, lê-se o Evangelho à letra, sem entender o que lá está. Como lhe disse, Jesus não pregou o diabo, mas o Reino de Deus e ajudou as pessoas. Dou-lhe um exemplo. Nos Evangelhos, aparece aquele passo no qual se fala de duas pessoas que eram consideradas "possuídas" pelo diabo, até andavam pelos túmulos. Eram ferozes e as pessoas, claro, tinham medo. Ao constatarem que Jesus ia ajudar estes desgraçados em tanta dificuldade, os demónios, porque andava por ali uma vara de porcos pediram-lhe que os mandasse para os porcos. Jesus disse-lhes que fossem e eles, saindo, entraram nos porcos, que se despenharam por um precipício no mar e morreram nas águas. O que é que está aqui? Jesus ajudou de modo eficaz aqueles "possessos"; os demónios entraram nos porcos (não se pode esquecer que os porcos eram considerados animais impuros) e precipitaram-se no mar (não se pode esquecer que o mar é também símbolo do mal. Pense-se, por exemplo: Jesus andou sobre as águas, para dizer que Jesus está acima do mal e liberta; chamou os discípulos e fê-los pescadores de homens, para dizer que devem libertar as pessoas do mal; no final, diz o livro do Apocalipse que haverá um céu novo e uma terra nova e já não haverá mar, isto é, já não haverá mal)... Quando lemos o Evangelho, é preciso ler o que lá está, interpretando a linguagem utilizada no contexto da época.
Sabe? O diabo também faz muito jeito a muita gente que não está para se converter. Diabos é o que mais há por aí, incluindo nós próprios: muitas vezes nós somos o diabo para nós. Não é preciso haver um tentador de fora, há tentação suficiente connosco. Vou dar exemplos. Olhe: a corrupção é uma tentação do diabo! E este país com a corrupção não avança! Não avança, isto é uma tragédia. Está a ver?, mas depois há os corruptos activos e passivos. Os políticos estão lá para quê? Deviam estar lá para servir o povo, não para se servir, nem servir os seus interesses em conluio muitas vezes entre política e negócios. Isto é o diabo! Veja o estado da educação, da saúde, da Justiça.. É o diabo! Olhe: a pedofilia; é uma tragédia na Igreja, há padres pedófilos, é uma tragédia, isto é o diabo!
O diabo está nas más acções das pessoas!
E nós atribuímos coisas ao diabo, porque é mais fácil, em vez de nos convertermos. Portanto, a pergunta que faço é: que responsabilidade é esta? Muitas vezes, atribuímos ao diabo as tentações, etc., para não nos convertermos. Olhe, afastemos o diabo de nós, façamos um "exorcismo" sobre nós, mudemos de vida, sejamos dignos, honestos, tentemos ajudar os outros, aqueles que estão em dificuldade e vamos ter um mundo melhor como Jesus queria.
É curioso porque, no fundo, o que está a dizer é que as pessoas têm que chamar mais a elas a responsabilidade sobre as pessoas que são e a vida que levam.
Nem mais! A dignidade! Não atribuamos ao mafarrico, ao demónio, ao diabo... o que nos pertence a nós. Deixe que lhe diga, eu conheço dois diabos muito interessantes: um, está na Catedral de Friburgo, na Alemanha, está lá no alto, uma coisa bonita, a defecar, é uma coisa soberba!... E há um outro que está no frontispício da Catedral de Basileia, que é lindíssimo, ele a tentar uma mulher, ele sorridente e ela enlevada na sedução, está a ver?
As tentações estão aí, mas bastamos nós para nos tentarmos e cairmos na tentação. Se não andarmos direitos, erguidos e inteiros, as tentações chegam e sucumbimos. Se não tivermos um pouco de tempo para parar e pensar na nossa vida, ter momentos de silêncio para rezar, fazer silêncio para ouvir o melhor, a voz da consciência, caminhar no sentido da verdade, do bem, da beleza..., não nos admiremos. É o diabo!
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia