Crónica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias
"Nunca trates os seres humanos como coisas, mas sempre como sujeitos e pessoas."
Com as biotecnologias, um dos novos continentes científicos é o cérebro, e a pergunta é se, com os avanços neste domínio, o enigma do ser humano será finalmente superado ou se, pelo contrário, ele permanecerá. Grandes debates se travam entre as neurociências e a filosofia, precisamente por causa de temas candentes e incendiários, como a subjectividade, a autodeterminação, a vontade livre.
Sobre estas questões, o filósofo e professor da Universidade de Tubinga Manfred Frank deu há algum tempo uma longa entrevista ao alemão Die Zeit. O que aí fica reflecte esse debate.
A questão da subjectividade pertence ao núcleo da reflexão humana. Embora algumas correntes filosóficas falem da sua dissolução, penso que o sujeito é ineliminável. Argumento, mostrando que a condição de possibilidade de objectivar -- no caso do Homem, de objectivar-se -- é o sujeito, de tal modo que, por mais que objective de si mesmo, nunca se objectivará completamente, já que continuará a ser o sujeito que (se) objectiva.
M. Frank também afirma que nunca será possível reduzir a consciência e o espírito a processos neuronais, e isso "por razões de princípio". Há uma questão de princípio: como explicam as neurociências a passagem de processos físicos inconscientes a processos mentais conscientes? "Não é possível substituir o saber sobre nós mesmos por um saber objectivo sobre o mundo." A subjectividade não pertence ao mundo dos objectos.
O "eu" do autoconhecimento não é redutível àquilo a que nos referimos com nomes ou caracterizações. "A autoconsciência é um conhecimento único, reflexivo, no qual uma pessoa se refere conscientemente a si mesma, mas a si mesma em posição objectiva. Como poderia ela, porém, captar este eu-objecto como ela mesma enquanto sujeito, se, antes desta apresentação objectiva, não tivesse tido uma consciência inobjectiva de si?" Esta consciência inobjectiva quer dizer vivida, pré-reflexiva.
Permanece uma questão: "Quando identifico espírito com matéria, não identifico matéria com matéria." Trata-se como que dos dois lados de uma moeda, mas as condições de verdade do neuronal não se identificam com as do espírito: as primeiras encontram-se num tratado de fisiologia enquanto as dos estados mentais são verificadas introspectivamente, como viu Descartes. Isso é experienciado também ao nível do vocabulário, que é diferente para descrever o psíquico e o estado físico correspondente: não teria sentido exprimir a inclinação amorosa por alguém, descrevendo os processos electromagnéticos no cérebro.
A tese de neurocientistas que afirmam não haver, por detrás do alegado livre arbítrio, senão processos neuronais, que determinam a vontade, contradiz não só a compreensão jurídica de responsabilidade mas também a nossa própria autocompreensão: queremos ser autores racionais de mudanças no mundo - tentamos "tomar decisões racionais".
Para lá dos sistemas jurídico-penais, que pressupõem a liberdade, um exemplo. Suponhamos que alguém tropeça, sem querer, e, ao cair sobre outra pessoa, esta é apanhada por um carro e morre. Distinguimos muito bem esta situação daquela em que alguém empurra intencionalmente outra pessoa. E há esta virtude admirável: resistir moralmente à maioria. Os opositores ao Terceiro Reich "merecem o nosso sumo respeito", precisamente porque foram poucos e capazes de enfrentar a morte. Aí, "os neurocientistas têm muito para justificar, no sentido de dar conta do correcto normativamente dessas decisões a partir de processos neuronais".
Tudo o que é essencial, quando pensamos na humanidade, "vinculamo-lo ao pensamento da subjectividade e não à nossa representação do cérebro. São sempre pessoas, sujeitos, que consideramos como criadores de literatura, cultura ou religião". Afinal, "temos cérebros e somos eus". Daí poder formular-se o imperativo categórico de Kant nestes termos: "Nunca trates os seres humanos como coisas, mas sempre como sujeitos e pessoas." Se o mundo consistisse só em objectos, não haveria ninguém a quem dirigir o preceito: "Porta-te decentemente com os outros sujeitos."
Neste mesmo sentido se pronunciam outros autores mais recentemente. Por exemplo, o médico e teólogo Alfred Sonnenfeld em El arte de la felicidad. Mente, cerebro y genes: "Apesar do interminável e espectacular dinamismo cerebral, permanece a pergunta pelo nosso eu, a nossa identidade. O "eu" que se vai formando não é a mesma coisa que o cérebro. Há quem opina que o eu é gerado pelo cérebro, o eu seria produto do cérebro e, por conseguinte, não seria livre. Mas esta afirmação carece de justificação. Na nossa análise sobre a formação do autoconsciente estaríamos equivocados se pensássemos que cada um é o seu cérebro. Sem dúvida, sem a posse de um cérebro mais ou menos são, não poderíamos pensar, estar despertos, ser conscientes. Mas disso não se pode concluir que somos idênticos ao nosso cérebro. O ser humano é muito mais do que o seu cérebro."
Reflectindo sobre o eu irredutível (absolutamente irredutível também ao eu do pai e da mãe, também eles irredutíveis), expressão do milagre da pessoa, que é fim em si mesma e não simples meio, e sobre a liberdade que, numa situação-limite (por exemplo, numa guerra, um soldado é obrigado a matar um inocente sob pena de, se não o fizer, ele próprio ser morto, e não o faz), dá a vida para salvaguardar a dignidade, é inevitável não ser confrontado com a questão de Deus criador e salvador.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia