no PÚBLICO
1. O jornal PÚBLICO, no Domingo passado, foi à missa, em Lisboa e no Porto [1], e ficou surpreendido por não encontrar os respectivos bispos a presidir à celebração. Na Sé de Lisboa, encontrou um jovem padre, José André, capelão do Hospital de Santa Maria e do Hospital de São Francisco Xavier, que, a propósito dos abusos sexuais na Igreja, citou uma conversa com o pároco da Sé: "Olha Zé, aguentar nós aguentamos, mas nós não fomos feitos para aguentar, fomos feitos para sermos felizes. Aguentar ciclos viciosos em que nos torturamos mutuamente não nos conduz à felicidade."
Baltazar Martins Jesuíno tem realçado, de várias maneiras, a educação para a felicidade [2]. São Tomás de Aquino antecede a sua ética teológica de um tratado de cinco questões sobre a felicidade, princípio e fim do agir humano [3]. Distancia-se dos seus contemporâneos que colocam essa questão apenas no fim e parece encontrar-se com Aristóteles, que fala da felicidade no primeiro e no último livro da Ética, embora se distancie dele na definição que dá de felicidade. Longe de se situar sob o signo da obrigação, como fazia a imensa maioria dos outros teólogos moralistas, a de Tomás é colocada sob a conquista da felicidade. Longe de ser regida pelo imperativo da obediência a uma lei exterior, não conhece outra lei a não ser a do amor. O mestre Tomás vai ao ponto de dizer que uma forma de agir que não fosse mais do que uma obediência à lei faltava-lhe uma dimensão essencial à virtude, que é para a pessoa ser atraída pelo bem, por ele mesmo, e não por ser coagida. É uma moral da liberdade colocada inteiramente sob o signo da realização evangélica do sujeito [4].
O que há de mais importante na lei do Novo Testamento, e na qual consiste toda a sua força, é a graça do Espírito Santo acolhida pela fé em Cristo. Tudo o resto é apenas para a secundar. É dada ao íntimo da pessoa, só secundariamente é escrita. Mais, sem a graça do Espírito Santo – lei do amor e da liberdade –, a própria letra dos Evangelhos, em vez de salvar, mata [5].
2. Por causa de uma antropologia que não respeita a complexidade do ser humano, é fácil cair no angelismo e, como disse Pascal, o ser humano não é anjo nem besta, mas quem quer ser anjo, acaba por ser uma besta.
Seria bom não separar o carnaval e as cinzas, isto é, o riso e as exigências da conversão, segundo o Evangelho, que consiste no reencontro com a alegria perdida.
Conta-se que, quando Santa Teresa d’Ávila andava de mosteiro em mosteiro para a reforma do Carmelo, era muito conhecida pela sua austeridade. Uma senhora rica quis pôr à prova essa austeridade, convidando-a para jantar. O prato era perdiz e ela, esfomeada, regalou-se. Os convivas perguntavam onde está a Teresa dos famosos jejuns? Resposta pronta: quando é jejum é jejum, quando é perdiz é perdiz. O humor vive bem com as exigências da santidade. Um santo triste é um triste santo.
Nos anos 70, do século passado, várias pessoas que frequentaram o curso de Teologia de Verão do Instituto de S. Tomás de Aquino (ISTA), em Fátima, testemunham a novidade das aulas de Teologia Moral do frei Mateus Peres, O.P. Pela primeira vez ouviram ensinar que a vida moral não podia negar o prazer dos sentidos, pelo contrário, afirmar a importância que eles têm na vida humana, na vida moral: o prazer de olhar a beleza, de sentir bons aromas, ter prazer na boa comida, ouvir boa música, sentir os prazeres do tacto, etc.
Mateus Peres investigou e ensinou a Ética teológica do seu mestre medieval Tomás d’Aquino, em confronto com a modernidade. Este explicou, de forma paciente e minuciosa, toda a complexidade do ser humano, a sua unidade e a sua plasticidade. Existe para crescer e desabrochar pela educação, pela cultura, pela solidariedade e pela graça e comunhão com Deus e com os outros. É igualmente solicitado por uma multiplicidade de pulsões ou desejos, dotado de uma liberdade defectível. Por isso, capaz de se autodestruir no plano espiritual, ético e divino [6].
O ser humano não está feito, vai-se fazendo, não é, vai sendo. Se não se tivesse deformado, viveria a sua sexualidade com o maior prazer em toda a sua perfeição erótica e espiritual [7]. Não pode viver sem prazer partilhado. Atraiçoa-se se a busca do seu prazer é vivida à custa do sofrimento dos outros.
Uma ética, uma moral que desconfia, nega ou julga pecaminoso a autenticidade das sensações humanas é desumana. As leis e os preceitos, se não promoverem o bem integral da pessoa, atraiçoam a própria vida ética.
3. Este domingo é o 1.º da Quaresma, que já começou na passada quarta-feira, chamada das Cinzas. Nessa celebração, repetia-se, de forma niilista, lembra-te que és pó e ao pó voltarás. Creio que é melhor a fórmula actual: convertei-vos e acreditai no Evangelho, acreditai na alegria.
Nesse dia, o texto de S. Mateus não entra na mentalidade mercantilista, que não faz o bem por ser bem, mas para dar nas vistas, aparecendo hipocritamente como virtuoso. Por isso, nas esmolas, emprega a sentença radical: não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita. O verdadeiro jejum e a verdadeira oração não podem ser um exibicionismo religioso.
Hoje, a liturgia eucarística lembra a fragilidade da nossa condição que não está confirmada no bem. Pode atraiçoar-se. O próprio Jesus, quando buscava o seu caminho, retirado no deserto, meditando na experiência mística, a seguir ao baptismo penitencial do rio Jordão, foi alvo de tentações messiânicas do poder de dominação: dominação económica, política e religiosa. Recusou tudo. O seu caminho não era o de dominar, mas o de servir, começando pelas periferias sociais e espirituais.
Os discípulos não entenderam isso. Para eles, o seguimento de Jesus era o começo de uma carreira. Nunca desistiram dessa ambição, por mais que Jesus lhes dissesse, nos dissesse também hoje a nós, que quem quer ser o primeiro coloque-se ao serviço de todos.
A nossa Quaresma só pode ser verdadeira se tiver como horizonte a conversão dos nossos desejos do poder de dominar. Uma pessoa só deve ser considerada católica porque deseja a sua vida ao serviço de quem precisa de ajuda, seja crente ou não. Uma Igreja só pode ser católica, isto é, universal, quando é uma escola de aprender a servir, sem olhar a quem. Todos nos devíamos tornar cada vez mais competentes, não para dominar, mas para servir.
R. Tagore exprimiu bem o sentido de uma Quaresma cristã: Adormeci e sonhei que a vida era alegria; despertei e vi que a vida era serviço; servi e vi que o serviço era uma alegria.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Cf. Reportagem de Rita Ferreira e Patrícia Carvalho
[2] Baltazar Martins Jesuíno, Educação para a Felicidade e o Bem-Estar, Editora RH, 2021
[3] S.Th. I-II q. 1-5
[4] Cf. Jean-Pierre Torrell, La Somme de Saint Thomas, Cerf, 1998, pp. 47-48
[5] Cf. S.Th. I-II q. 106-108
[6] Cf. Frei Carlos Josaphat, Paradigma Teológico de Tomás de Aquino, Paulus – Brasil, 2012, p.314
[7] Cf. S.Th. I q. 98, a.2