segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

A GAFANHA VISTA POR FREDERICO DE MOURA




«Falou-se de marnotos, falou-se de pescadores e mareantes, faltando, apenas, falar dos gafanhões que vieram, por fim, tratar da moldura afeiçoando a terra que debrua a laguna substituindo a desolação da duna e da flora quaresmal que, a medo, aflorava, por uma verdura indizível de milheirais frescos e viçosos e de batatais que lhe corroboram os tons abertos com gradações sublinhantes que parecem oriundas de uma paleta de pintor.
Quando, aí por volta de 1677, os foreiros do Conde de Aveiras, Senhor de Vagos, vieram com os seus enxadões violar a virgindade das lombas para as cultivar, não toparam nelas com nenhuma quentura maternal para as sementes que pretendiam lançar-lhe sobre o dorso, nem lhe sentiram nas entranhas qualquer resquício de matéria orgânica capaz de dar estímulo a uma vontade que não fosse dotada de ganas para teimar independentemente de qualquer aceno indutor.
Terra gafada e mutável ao sabor do vento onde, aqui e além, nalgumas baixeiras mais frescas se aventuravam a arrebitar vergônteas umas tristes plantinhas cinzentas, onde se não catava um indício de clorofila, ou um maciço de junco, hirto e agressivo como coroa de espinhos, a terra das Gafanhas recebia pasmada e interrogativa, as primeiras bagadas de suor que o trabalho humano destila.
Dava-se uma cavadela funda e, antes de levantar o gume faiscante da alfaia à altura da cabeça, logo a terra arrunhava arrasando a cova que procurava o filão da esperança.
Momento a momento, o perfil da duna onde o vento construía desenhos que semelhavam o espraiado deixado pelas ondas quando retiram para o mar a que pertencem, mudava de cariz quer planificando-se numa promessa de aceitação, quer avolumando-se a entulhar o vislumbre de confiança.
Os passos atolavam-se naquela areia movediça e fofa, cambando os pés do caminheiro, e um quilómetro de percurso era capaz de esfalfar o dromedário, quanto mais um homem.»

In RESSONÂNCIAS 
de Frederico de Moura

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