Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO
Serra do Pilar |
1. Algumas Igrejas cristãs viveram o Oitavário de Oração pela Unidade de todos os cristãos, purificando a memória das guerras do passado e trabalhando a erguer pontes, num tempo em que se voltou ao ridículo de acreditar que só podemos construir o bem de uns com o mal dos outros. Em vez da cooperação, voltamos às rivalidades de destruição. A vontade de servir a alegria não será melhor do que a vontade de dominar?
A história das divisões, entre cristãos, remonta ao primeiro século. No Domingo passado, já S. Paulo perguntava se Cristo estava dividido, para que alguns andassem a dizer: “Eu sou de Paulo, eu sou de Apolo, eu sou de Pedro, eu sou de Cristo.” Para se colocar fora dessa competição, acrescenta: “O baptismo que recebestes não é de Paulo nem de Pedro nem de Apolo. É de Cristo.”
Vivemos, nos últimos tempos, um equívoco ao nível da liderança da Igreja Católica. Alguns meios de comunicação social, e não só, davam a entender que havia dois papas: Bento XVI e Francisco. Se isso fosse verdade, a Igreja estaria dividida na sua própria liderança. De facto, Bento XVI renunciou a continuar Papa por razões que ele próprio explicitou. Quem, depois, foi eleito Papa foi o cardeal argentino Bergoglio, que se tornou o bispo de Roma e o único Papa da Igreja, com o nome de Francisco, inspirado em S. Francisco de Assis, marcando dessa maneira a orientação do seu pontificado.
Dizer, agora, que existem os católicos de Bento XVI e os católicos de Francisco é aceitar o que S. Paulo recusava. Seja qual for a tendência, a vocação de todos é tornarmo-nos cristãos, seguidores do caminho aberto por Cristo, graça e tarefa para a vida toda. É normal que se afirmem várias sensibilidades e carismas. Devem robustecer a plural vida da Igreja. O que se pretende, com o movimento ecuménico, é a união dos cristãos nas suas legítimas diferenças. Não devem ser a cópia uns dos outros nem absolutizar as suas diferenças, tornando-as incompatíveis. O Espírito de Cristo é libertador de todas as energias criativas nas comunidades cristãs. Na vida concreta, são inevitáveis as tensões, mas a única forma de as superar é a escuta dos outros e das suas razões, para tornar possível diálogos fecundos.
Parece-me pouco cristão, embora não seja caso único na história das Igrejas, que Cirilo, patriarca da Igreja Ortodoxa Russa, ande a incentivar os padres a irem para a frente de combate para abençoar os soldados. Consta, da história, que os primeiros cristãos até recusavam o serviço militar para não participarem na violência da guerra.
Estamos cada vez mais longe da mensagem de Paulo VI, na ONU: nunca mais a guerra. Há 50 anos, Portugal estava envolvido em três frentes de guerra: Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, como vimos na última crónica.
2. Na celebração da Eucaristia deste Domingo, são proclamadas as Bem-aventuranças, segundo S. Mateus (5, 1-12). A versão de S. Lucas (6, 20-26) tem acentuações um pouco diferentes, porque os primeiros destinatários também eram diferentes. Mateus dirigia-se, sobretudo, aos judeus convertidos a Cristo; Lucas dirigia-se aos convertidos do paganismo.
Há muitos estudos de exegese bíblica e teologia sobre o chamado “Sermão da Montanha”. Pode parecer que remete a felicidade, como dom de Deus, para depois da morte. É, no entanto, para mudar o presente, a situação desumana de cada época. Não é por acaso que as duas versões começam com os pobres, não para uma consagração da situação da pobreza imposta. A pobreza voluntária é a felicidade de quem sabe viver com pouco, sem espírito de ganância, e não se resigna a um mundo de injustiça e miséria. Não esquece o destino universal dos bens deste mundo. O mundo é de todos e para todos. As verdadeiras reformas da Igreja, em todos os tempos, começam por não esquecer a conclusão da parábola dos Actos dos Apóstolos: não havia necessitados entre eles, porque tinham o sentido e o espírito de partilha.
Hoje, a palavra de ordem da militância das comunidades cristãs deve ser Justiça e Paz. Não pode haver paz com o crescimento da injustiça: em dez anos, a riqueza dos bilionários quase duplicou e os mais ricos (1% da população) concentram nas suas mãos o dobro da riqueza detida por 99% dos habitantes do mundo inteiro. A conclusão consta de um estudo da Oxfam, divulgado no passado dia 16 de Janeiro, quando estavam reunidos, na Suíça, os participantes do Fórum Económico Mundial [1]. Isto é uma vergonha.
3. Desabrochou para a vida eterna da alegria, no dia 18 deste mês, o Pe. Arlindo de Magalhães Ribeiro da Cunha, conhecido pela sua actividade pastoral inovadora na Comunidade Cristã da Serra do Pilar (Gaia, diocese do Porto).
Faz parte da breve história dessa comunidade uma referência ao Pe. Leonel do Padrão da Légua que, em 1974, tinha escrito: “Precisamos de encontrar urgentemente formas progressivas de vida comunitária intensa, onde cada um se conheça pelo seu nome, pelos seus problemas, pelas suas possibilidades e pelos seus dons, pela sua Fé. É necessário ultrapassar, custe o que custar, ainda que seja preciso arriscar tudo por tudo, a igreja-das-grandes-massas, onde cada um corre o perigo de andar a vaguear mais ou menos irresponsavelmente, em risco de se perder. É preciso que acabe definitivamente o escândalo de as pessoas se perderem dentro da própria Igreja. A igreja-das-grandes-massas nunca pode ser Comunidade.” [2]
Esta convicção era muito partilhada, em vários países, como fruto de muitas experiências a partir do Concílio Vaticano II (1962-1965) e não só. Tornou-se uma grande referência o chamado “Pacto das Catacumbas”, redigido e assinado por 40 padres conciliares (16/11/1965), pouco antes da conclusão do Concílio. Não cabe nestas poucas linhas descrever o que foi o fervor pelas pequenas comunidades e as razões porque vingou em poucos lugares.
No 7Margens, houve o cuidado de recolher depoimentos sobre vários momentos dos itinerários da comunidade da Serra do Pilar e o papel desempenhado pelo Pe. Arlindo Magalhães. Não era o dono da comunidade, era um dos seus animadores mais conhecedor e imaginativo. Não lhe interessava mandar, mas estimular. É, pelo menos, o que experimentei na resposta a vários convites para participar em alguns dos seus momentos. Creio que a história desta comunidade não ficará apenas como um caso de estudo.
Por outro lado, a Serra do Pilar não era o seu único mundo. Não seria possível, por exemplo, recolher em livro as suas magníficas crónicas no Mensageiro de Santo António? A divulgação da cultura, do património, da arte, dos costumes, das gentes, dos lugares e da fé deixaram um rasto de valor incalculável nas páginas dessa revista. A sua direcção talvez goste de as ressuscitar numa publicação acessível às novas gerações.
Ontem, celebrámos a memória litúrgica de S. Tomás de Aquino. Terei de o lembrar em próxima ocasião. Tentar fazer deste incendiário um bombeiro, como disse Umberto Eco, é uma traição que importa recusar.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Cf. Relatório de Oxfam, Janeiro 2023
[2] https://serradopilar.com/apresentacao-da-comunidade/