segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Tornar possível o Advento da paz

Crónica de Bento Domingues 
no PÚBLICO 

Perante os conflitos que surgem entre grupos, países e continentes, quais serão os melhores caminhos para instaurar a paz? Parece evidente que o país agredido tem o direito e o dever de se defender.

1. A crónica do domingo passado tinha por título Advento de um mundo outro e podia acrescentar, por uma Igreja outra e por outro comportamento de todas as religiões e de todos os cidadãos religiosos ou não. É, com efeito, para um mundo outro que se devem dirigir todos os esforços dos cristãos que o sejam de verdade, isto é, pacificadores.
É, por isso, duplamente escandalosa a guerra entre os que se dizem cristãos. Esse escândalo obriga a interrogar todas as orações, todas as liturgias, todas as formas de culto. Sem ética são vazios os cuidados com a indispensável qualidade estética da liturgia dominical. O que verdadeiramente conta é o seu contributo para mudar a vida, em todas as suas dimensões, sob o ponto de vista individual e comunitário (1).
É o próprio profeta Isaías, a grande voz do Advento, que põe na boca de Deus a maldição sobre as práticas religiosas do seu tempo: “De que me serve a mim a multidão das vossas vítimas? Estou farto de holocaustos de carneiros, da gordura de bezerros. Não me agrada o sangue de vitelos, de cordeiros nem de bodes. Quando me viestes prestar culto, ao pisardes o meu santuário, quem reclamou de vós semelhantes dons? Não me ofereçais mais dons inúteis: o incenso é-me abominável; as celebrações lunares, os sábados, as reuniões de culto, as festas e as solenidades são-me insuportáveis. Abomino as vossas celebrações lunares e as vossas festas; estou cansado delas, não as suporto mais. Quando levantais as vossas mãos, afasto de vós os meus olhos; podeis multiplicar as vossas preces, que Eu não as atendo, porque as vossas mãos estão cheias de sangue.
“Lavai-vos, purificai-vos, tirai da frente dos meus olhos a malícia das vossas acções. Deixai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem; procurai o que é justo, socorrei os oprimidos, fazei justiça aos órfãos, defendei as viúvas. Vinde então e entendamo-nos: mesmo que os vossos pecados sejam como escarlate, tornar-se-ão brancos como a neve; mesmo que sejam vermelhos como a púrpura, ficarão brancos como a lã” (2).
Perante os conflitos que surgem entre grupos, países e continentes, quais serão os melhores caminhos para instaurar e defender a paz? Parece evidente que o país agredido tem o direito e o dever de se defender. O pacifismo incondicional pode implicar uma traição. No entanto, é um imperativo ético procurar sempre a substituição da violência pelo diálogo, pelo reconhecimento mútuo. Toda a ajuda internacional deve estar orientada para que os agressores e os agredidos reconheçam que o caminho da guerra não constrói a paz.
É evidente que os fabricantes e comerciantes de armamento não estão interessados na paz. Deles só se pode esperar a agudização da guerra e o seu prolongamento. Para esses negócios, a paz é uma ameaça. Os caminhos de todas as formas de diálogo, a recusa da vingança e das represálias continuam a ser o coração da paz.

2. Não há soluções prontas a servir para as questões do relacionamento entre os seres humanos e destes com a natureza. É de espantar que, depois de tanta experiência humana, de tantos séculos, de tantas religiões, de tantos programas económicos, políticos e sociais, ainda nos encontremos tão longe da realização dos melhores desejos, dos melhores sonhos. No entanto, o problema do Advento é o da esperança resistente (3): não desistir, não se resignar.
A representação bíblica do tempo é feita de encantamento e de desencanto. Mesmo na simbólica apresentação da criação, um cenário paradisíaco para o ser humano – homem e mulher –, este acaba por desfigurar tudo a ponto de imaginar Deus arrependido de o ter criado. O dilúvio e a arca de Noé dizem o laço entre a purificação e a esperança resistente. O ser humano não está feito, vai-se fazendo e desfazendo. Nada é fatal.
A liturgia deste domingo situa-se num sonho messiânico de puro encantamento: “Brotará um rebento do tronco de Jessé e um renovo brotará das suas raízes. Sobre ele repousará o espírito do Senhor: espírito de sabedoria e de entendimento, espírito de conselho e de fortaleza, espírito de ciência e de temor do Senhor. Não julgará pelas aparências nem proferirá sentenças somente pelo que ouvir dizer; mas julgará os pobres com justiça e com equidade os humildes da terra; ferirá os tiranos com os decretos da sua boca e os maus com o sopro dos seus lábios.
“A justiça será o cinto dos seus rins e a lealdade circundará os seus flancos. Então o lobo habitará com o cordeiro e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; o novilho e o leão comerão juntos e um menino os conduzirá. A vaca pastará com o urso e as suas crias repousarão juntas; o leão comerá palha como o boi. A criancinha brincará na toca da víbora e o menino desmamado meterá a mão na toca da serpente.
“Não haverá dano nem destruição em todo o meu santo monte, porque a terra está cheia de conhecimento do Senhor, tal como as águas que cobrem a vastidão do mar. Naquele dia, a raiz de Jessé, estandarte dos povos, será procurada pelas nações e será gloriosa a sua morada” (4).

3. A utilidade de um poema é ser um poema e este é muito belo. Pouco me importa se o classificam como uma fábula ou uma parábola. Não parece destinar-se a fundamentar a universalidade de um sistema vegetariano, mas aquilo que, na natureza, é um absurdo – tornar todos os carnívoros em herbívoros – é a verdadeira condição dos seres humanos: viverem em perfeita harmonia com a natureza e entre si. O sonho de um equilíbrio absoluto da natureza significa a conquista de um equilíbrio que os seres humanos devem conseguir se não quiserem fazer deste mundo um inferno.
A afirmação de uns não se faz à custa da negação dos outros. Este poema, este desejo, mediante a elaboração de uma fábula futura, traduz a essência da vida humana: Fratelli Tutti. As pessoas têm mil formas de se tornarem irmãos.
A própria história europeia do século XX testemunha que, depois de duas guerras devastadoras, a partir de 1945, foi possível viver um período de paz por um tempo tão longo, como o nosso continente nunca havia conhecido em toda a sua história. É mérito, em grande parte, de uma primeira geração de homens políticos do pós-guerra: Churchill, Adenauer, Schumann, De Gasperi, Spaak.
Estes grandes políticos imaginaram e conseguiram o que parecia impossível. Só olharam para trás para dizerem o que não queriam. Era o Advento de um mundo outro, para todos, que os seduzia. E, agora, voltámos à guerra.
Segundo o Evangelho, João Baptista vem dizer-nos que não estamos irremediavelmente perdidos (5). Não basta, no entanto, invocar o Espírito de Cristo e repetir, com o livro do Apocalipse, Amém, vem Senhor Jesus! Ele vem, mas não é para dispensar a nossa conversão a uma nova forma de viver, de rezar e de trabalhar. É connosco que Deus quer fazer novas todas as coisas (6). As guerras só sabem destruir.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

(1) Rafael Gonçalves, Mistagogia Poética do Silêncio na Liturgia, AO Liturgia, Braga, 2022
(2) Is 1, 11-18
(3) Gn 2-5
(4) Is 11, 1-10
(5) Mt 3, 1-12
(6) Ap 21 e 22

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue