Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO
Perante os conflitos que surgem entre grupos, países e continentes, quais serão os melhores caminhos para instaurar a paz? Parece evidente que o país agredido tem o direito e o dever de se defender.
1. A crónica do domingo passado tinha por título Advento de um mundo outro e podia acrescentar, por uma Igreja outra e por outro comportamento de todas as religiões e de todos os cidadãos religiosos ou não. É, com efeito, para um mundo outro que se devem dirigir todos os esforços dos cristãos que o sejam de verdade, isto é, pacificadores.
É, por isso, duplamente escandalosa a guerra entre os que se dizem cristãos. Esse escândalo obriga a interrogar todas as orações, todas as liturgias, todas as formas de culto. Sem ética são vazios os cuidados com a indispensável qualidade estética da liturgia dominical. O que verdadeiramente conta é o seu contributo para mudar a vida, em todas as suas dimensões, sob o ponto de vista individual e comunitário (1).
É o próprio profeta Isaías, a grande voz do Advento, que põe na boca de Deus a maldição sobre as práticas religiosas do seu tempo: “De que me serve a mim a multidão das vossas vítimas? Estou farto de holocaustos de carneiros, da gordura de bezerros. Não me agrada o sangue de vitelos, de cordeiros nem de bodes. Quando me viestes prestar culto, ao pisardes o meu santuário, quem reclamou de vós semelhantes dons? Não me ofereçais mais dons inúteis: o incenso é-me abominável; as celebrações lunares, os sábados, as reuniões de culto, as festas e as solenidades são-me insuportáveis. Abomino as vossas celebrações lunares e as vossas festas; estou cansado delas, não as suporto mais. Quando levantais as vossas mãos, afasto de vós os meus olhos; podeis multiplicar as vossas preces, que Eu não as atendo, porque as vossas mãos estão cheias de sangue.
“Lavai-vos, purificai-vos, tirai da frente dos meus olhos a malícia das vossas acções. Deixai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem; procurai o que é justo, socorrei os oprimidos, fazei justiça aos órfãos, defendei as viúvas. Vinde então e entendamo-nos: mesmo que os vossos pecados sejam como escarlate, tornar-se-ão brancos como a neve; mesmo que sejam vermelhos como a púrpura, ficarão brancos como a lã” (2).
Perante os conflitos que surgem entre grupos, países e continentes, quais serão os melhores caminhos para instaurar e defender a paz? Parece evidente que o país agredido tem o direito e o dever de se defender. O pacifismo incondicional pode implicar uma traição. No entanto, é um imperativo ético procurar sempre a substituição da violência pelo diálogo, pelo reconhecimento mútuo. Toda a ajuda internacional deve estar orientada para que os agressores e os agredidos reconheçam que o caminho da guerra não constrói a paz.
É evidente que os fabricantes e comerciantes de armamento não estão interessados na paz. Deles só se pode esperar a agudização da guerra e o seu prolongamento. Para esses negócios, a paz é uma ameaça. Os caminhos de todas as formas de diálogo, a recusa da vingança e das represálias continuam a ser o coração da paz.
2. Não há soluções prontas a servir para as questões do relacionamento entre os seres humanos e destes com a natureza. É de espantar que, depois de tanta experiência humana, de tantos séculos, de tantas religiões, de tantos programas económicos, políticos e sociais, ainda nos encontremos tão longe da realização dos melhores desejos, dos melhores sonhos. No entanto, o problema do Advento é o da esperança resistente (3): não desistir, não se resignar.
A representação bíblica do tempo é feita de encantamento e de desencanto. Mesmo na simbólica apresentação da criação, um cenário paradisíaco para o ser humano – homem e mulher –, este acaba por desfigurar tudo a ponto de imaginar Deus arrependido de o ter criado. O dilúvio e a arca de Noé dizem o laço entre a purificação e a esperança resistente. O ser humano não está feito, vai-se fazendo e desfazendo. Nada é fatal.
A liturgia deste domingo situa-se num sonho messiânico de puro encantamento: “Brotará um rebento do tronco de Jessé e um renovo brotará das suas raízes. Sobre ele repousará o espírito do Senhor: espírito de sabedoria e de entendimento, espírito de conselho e de fortaleza, espírito de ciência e de temor do Senhor. Não julgará pelas aparências nem proferirá sentenças somente pelo que ouvir dizer; mas julgará os pobres com justiça e com equidade os humildes da terra; ferirá os tiranos com os decretos da sua boca e os maus com o sopro dos seus lábios.
“A justiça será o cinto dos seus rins e a lealdade circundará os seus flancos. Então o lobo habitará com o cordeiro e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; o novilho e o leão comerão juntos e um menino os conduzirá. A vaca pastará com o urso e as suas crias repousarão juntas; o leão comerá palha como o boi. A criancinha brincará na toca da víbora e o menino desmamado meterá a mão na toca da serpente.
“Não haverá dano nem destruição em todo o meu santo monte, porque a terra está cheia de conhecimento do Senhor, tal como as águas que cobrem a vastidão do mar. Naquele dia, a raiz de Jessé, estandarte dos povos, será procurada pelas nações e será gloriosa a sua morada” (4).
3. A utilidade de um poema é ser um poema e este é muito belo. Pouco me importa se o classificam como uma fábula ou uma parábola. Não parece destinar-se a fundamentar a universalidade de um sistema vegetariano, mas aquilo que, na natureza, é um absurdo – tornar todos os carnívoros em herbívoros – é a verdadeira condição dos seres humanos: viverem em perfeita harmonia com a natureza e entre si. O sonho de um equilíbrio absoluto da natureza significa a conquista de um equilíbrio que os seres humanos devem conseguir se não quiserem fazer deste mundo um inferno.
A afirmação de uns não se faz à custa da negação dos outros. Este poema, este desejo, mediante a elaboração de uma fábula futura, traduz a essência da vida humana: Fratelli Tutti. As pessoas têm mil formas de se tornarem irmãos.
A própria história europeia do século XX testemunha que, depois de duas guerras devastadoras, a partir de 1945, foi possível viver um período de paz por um tempo tão longo, como o nosso continente nunca havia conhecido em toda a sua história. É mérito, em grande parte, de uma primeira geração de homens políticos do pós-guerra: Churchill, Adenauer, Schumann, De Gasperi, Spaak.
Estes grandes políticos imaginaram e conseguiram o que parecia impossível. Só olharam para trás para dizerem o que não queriam. Era o Advento de um mundo outro, para todos, que os seduzia. E, agora, voltámos à guerra.
Segundo o Evangelho, João Baptista vem dizer-nos que não estamos irremediavelmente perdidos (5). Não basta, no entanto, invocar o Espírito de Cristo e repetir, com o livro do Apocalipse, Amém, vem Senhor Jesus! Ele vem, mas não é para dispensar a nossa conversão a uma nova forma de viver, de rezar e de trabalhar. É connosco que Deus quer fazer novas todas as coisas (6). As guerras só sabem destruir.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
(1) Rafael Gonçalves, Mistagogia Poética do Silêncio na Liturgia, AO Liturgia, Braga, 2022
(2) Is 1, 11-18
(3) Gn 2-5
(4) Is 11, 1-10
(5) Mt 3, 1-12
(6) Ap 21 e 22