sábado, 12 de novembro de 2022

Adriano Moreira: "o eixo da roda"

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias 

Estava no comboio e foi uma jornalista que me deu a notícia. Apesar de esperada, a morte de Adriano Moreira foi um choque para mim. É sempre um choque a morte de um amigo: ah!, aquele nunca mais para sempre neste mundo!...
Éramos amigos, e tive com ele conversas e debates inesquecíveis, sempre iluminantes para mim. Até lhe devo um prefácio poderoso a um dos meus livros, Corpo e Transcendência, no qual apela, se a Humanidade hoje com excesso de poder quiser sobreviver, para a urgência do diálogo entre a cultura tecnocientífica e as Humanidades: "os temas da subjectividade, da solidão, do desespero, do nada, da ambiguidade, já não são problemas de um ou de cada homem, são problemas do género humano estarrecido com o poder que alcançou, só ultrapassado pela ignorância." Neste contexto, apresentava a imagem da roda -- "Os valores são o eixo da roda. A roda anda, passa por mudanças, e o eixo acompanha a roda, mas não anda" --, acrescentando: "Incluamos, cimeiros, os valores da relação com a transcendência."
Era católico, católico praticante. Confessou-me que, sendo a mãe a grande teóloga da sua vida, algumas vezes, "sempre por razões fáceis de entender", lhe acudia ao temperamento "o anticlericalismo transmontano". Disse-lhe: "Não se preocupe, senhor Professor. Jesus também era anticlerical." Evidentemente, tinha dúvidas, mas acreditava que na morte não acaba tudo - confiava em Deus. Continuava a pensar, ele que foi um marido e pai exemplar, que a fé é amparo das famílias. "Nunca adormeci sem rezar as orações que a minha mãe me ensinou", confessou-me.
Era católico também no sentido do étimo grego (katá, segundo; hólon todo): segundo o todo, ecuménico, universal. Cedo se apercebeu da urgência do diálogo ecuménico e inter-religioso -- o que ele chamava o espírito de Assis, no contexto do Concílio Vaticano II --, nomeadamente com os muçulmanos, mas sem esquecer, e por isso mesmo, que não há identidade europeia sem os valores cristãos. Por outro lado, politicamente, impõe-se a urgência de pensar algo que aponte para uma governança mundial, global.
No quadro da necessidade da defesa de uma "ciência com consciência" e da "aproximação, diálogo e solidariedade das diversas crenças em face dos perigos a que o globalismo nos conduziu", escreveu em 2015 uma carta ao Papa Francisco, da qual destaco a sugestão várias vezes feita: "Na ONU, em perda de autoridade, deveria ser criado, ao lado dos órgãos institucionais da Carta, um Conselho das Religiões, a estruturar segundo a experiência da ONU e a que tem sido ganha, sobretudo desde as reuniões de Assis, com as sucessivas iniciativas de encontros, conclusões, e acção, das Igrejas a bem da paz. Se a Igreja Católica tomasse a iniciativa, com respeito institucional, enriqueceria utilmente a contribuição que lhe pertence na doutrinação da paz, designadamente tendo enriquecido, com mestres, o património imaterial da Humanidade, tão descuidado e violado neste século sem bússola."
A profissão cristã católica tem uma dupla face: a mística e a ético-política. O que Adriano Moreira mais criticava é o relativismo: o que acontece está legitimado porque aconteceu. Mas prevenia: ou o Ocidente reabilita a ética ou o prognóstico sobre esta área do mundo é reservado. É preciso trazer a ética para o governo, para o ensino, para as instituições.
A sua conduta orientou-se pelo contributo a dar para o júbilo gratificante que seria podermos ter, "ao redor do mundo, uma força moral não-agressiva, convergente, praticante da regra da igualdade do género humano, cheia de amorosidade, cristãmente ecuménica, podendo ser extremamente eficaz pela observância da regra de que não são as nossas palavras, mas as nossas obras que rezam". Como académico insigne, exigia de si o que esperava dos mestres: "o esforço de ensinar para a incerteza", e foi apontando caminhos para evitar o desastre.
A Igreja enfrenta grandes desafios. Hoje, o apelo à transcendência cresce desordenadamente. O sentido de pertença é cada vez mais frouxo. Os valores desmoronam-se. Aí está, pois, a imensa tarefa da evangelização. De qualquer modo, "a defesa da dignidade dos homens exige instituições poderosas". Entre elas, "uma Universidade realmente autónoma" e, precisamente, "as Igrejas independentes e respeitadas". E que concordava comigo, cito, quando, enumerando os desafios para o século XXI, escrevi que o desafio essencial é a conversão de todos os membros da Igreja ao Evangelho, "a começar pelos que estão mais alto: papa, bispos, cardeais, padres, acreditar em Jesus e tentar segui-lo."
Na sua vida longa, sempre vigilante e consciente de que "assumir responsabilidades no processo é imperativo absoluto", olhando para o mundo e também e sobretudo para Portugal, fez suas, com a imensa sabedoria que possuía, as palavras do padre António Vieira sobre os pecados do tempo: "Uma das coisas de que se devem acusar e fazer grande escrúpulo os ministros, é dos pecados do tempo. Porque fizeram o mês que vem o que se havia de fazer o passado; porque fizeram amanhã o que se havia de fazer hoje; porque fizeram depois o que se havia de fazer agora; porque fizeram logo o que se havia de fazer já. Tão delicadas como isto hão-de ser as consciências dos que governam, em matérias de momento. O Ministro que não fez grande escrúpulo de momentos não anda em bom estado; a fazenda pode-se restituir, a fama, ainda que mal, também se restitui, o tempo não tem restituição alguma."

Anselmo Borges 


Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia

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