segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Percurso inacabado da Economia de Francisco

Crónica de Bento Domingues 
no PÚBLICO de ontem

O Papa desencadeou um movimento – A Economia de Francisco – precisamente porque a economia dominante não tem em conta o espírito do Santo de Assis, em vez de promover a vida dos mais pobres, arruína-os cada vez mais.

1. A característica do pontificado do Papa Francisco não é a de multiplicar iniciativas e realizações de ordem pessoal. Desde as tentativas de reforma da Cúria, ao envolvimento com o vasto mundo dos migrantes que fogem da fome e das guerras; da visão de um mundo a partir dos pobres e de todas as periferias existenciais; de despertar a sociedade para uma concepção da vida como realidade intergeracional, intercultural e interreligiosa; de não descansar enquanto a pedofilia e o seu encobrimento, por parte do clero, não se tornem empenhamento de toda a Igreja e da sociedade para acabar com essa tragédia; de fazer do Sínodo dos Bispos o Sínodo de toda a Igreja, mostrou sempre que procura, em todas as suas iniciativas, o envolvimento crescente de todas as pessoas de boa vontade.
Para este Papa, desde Março 2013, as suas questões são as de toda a humanidade, a fraternidade universal, como manifestou na Laudato Sí’ (a ecologia integral, cuidado da Casa Comum), na Carta A Fraternidade Humana em prol da paz mundial e da convivência comum – a quatro mãos – assim como na Fratelli Tutti. Não são documentos para figurar nas estantes religiosas, são tentativas de mobilização de pessoas e grupos que podem e devem trabalhar por um mundo outro, um mundo de paz activa. São convocatórias. Como mostrou nos encontros com os movimentos populares, trata-se sempre de olhar o mundo a partir de baixo, a partir do mais elementar figurado com os 3Ts: terra, teto e trabalho, isto é, três direitos sagrados.
No seu documento programático, A Alegria do Evangelho (2013), denunciou a economia que mata, expressão que teve um grande eco, tanto entre os que a apoiavam – católicos ou não – como entre os que a censuravam, com o argumento de que o Papa não é um economista. Teria exorbitado da sua missão de pastor da vida espiritual. Deixe, de uma vez para sempre, a política económica para os debates entre economistas, nas suas diversas orientações.
De facto, não conheço nenhuma obra de ciência económica assinada pelo Papa Francisco. Também neste domínio, revelou-se um bom pastor: desencadeou um movimento – A Economia de Francisco – precisamente porque a economia dominante não tem em conta o espírito do Santo de Assis, em vez de promover a vida dos mais pobres, arruína-os cada vez mais. E ainda neste domínio, segue fiel ao seu estilo: não faz aquilo que não sabe, mas faz fazer quem sabe ou pode vir a saber.

2. É paradoxal a minha situação ao escrever esta crónica. Ao elaborá-la, só podia conhecer uma parte do percurso da chamada Economia de Francisco e o anúncio de um evento do futuro, a realizar-se de 22 a 24 deste mês. Quando aparece publicada, é sobre um evento que já terminou e no qual não participei. Dir-se-á que o melhor seria ignorar o que, por outro lado, não quero nem posso ignorar.
O que desejo destacar é que o evento, em Assis, com a participação de tantos jovens de tantos países e a presença activa do Papa Francisco, não pode ser a clausura de um percurso. Seria uma traição ao convite que Bergoglio enviou, no dia 1 de Maio de 2019, a economistas, agentes de mudança, empreendedores e empreendedoras com menos de 35 anos em todo o mundo. Seria também trair o trabalho online dos últimos dois anos que não se deixou vencer pela pandemia, envolvendo milhares de jovens de 120 países dos cinco continentes.
O Papa designou o Professor Luigino Bruni para director científico deste grande projecto. Nesta reunião sem precedentes, além dos jovens, participarão também muitos especialistas de renome, incluindo Prémio Nobel da Paz de 2006, Muhammad Yunus, Prémio Nobel da Economia de 1998, Amartya Sen, Jeffrey Sachs ou Stefano Zamagni, entre vários outros, como os portugueses, Ricardo Zózimo, Professor da U. Nova, e Américo Mendes, da UCP Porto. Toda a movimentação desenvolvida, desde 2019, não pode ter prazo de validade.
O que aconteceu, nos últimos três dias, foi a realização de um programa preparado ao longo do tempo. O perigo destas realizações, por mais que se diga o contrário, é confundi-las com a lógica dos festivais: realizou-se e acabou. No entanto, é preciso dizer que, desde há muito, tudo tem sido feito para contrariar essa tendência. Um dos sinais foi dado no dia 24, ao apresentar ao Papa um pacto que ele e os jovens assinaram em conjunto, de forma pessoal e colectiva para se comprometerem neste caminho rumo a uma economia com alma, que não deixa ninguém para trás, como tinha explicado a jornalista da equipa de Economia de Francisco, Lourdes Hércules.

3. A esperança é que a Economia de Francisco faça parte de um processo mais amplo que possa levar os jovens e os adultos a comparar as suas propostas com importantes realidades da economia, finança e energia. É continuar a confrontar-se e confrontar os grandes da terra para que o acontecimento de Assis não seja só um sonho.
Quando tantos jovens se disponibilizam a trabalhar para dar substância aos sonhos e experimentar a profecia de uma economia, que não deixa ninguém para trás e que sabe viver em harmonia com as pessoas e com a terra, toda a Igreja se deve alegrar e sentir o dever de se informar, seguir e acompanhar esse processo, evitando a tentação de querer encaixotar os jovens e os seus projectos em estruturas pré-existentes, como tinha dito a irmã Alessandra Smerilli, secretária do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, que é parte desta iniciativa.
Importa, agora, dar a conhecer o percurso realizado até ontem e partir para uma etapa que divulgue, no ensino secundário e universitário, nas empresas, nos movimentos sindicais, nas Igrejas, para que saibam combinar o culto com esta nova cultura económica.
Como toda esta movimentação aconteceu a partir de iniciativas católicas, tentando envolver a sociedade e as igrejas cristãs e outros movimentos religiosos e humanistas, é fundamental dispor de um calendário de avaliação dos passos que se forem dando. Não para reproduzir o acontecimento emblemático dos últimos dias, mas pelo contrário, tanto ao nível da investigação como das realizações, perguntar-se sempre o que está a acontecer de novo.
Não estou a dizer nada de inédito. Apetece-me lembrar o que li, numa entrevista de 2019, de Ricardo Zózimo que envolve também Américo Mendes: Há três coisas que eu quero levar: o nosso entusiasmo por esta iniciativa, a nossa vontade de que isto não seja um ponto de chegada nem um ponto de partida, mas um ponto de celebração e de nos lançar para a frente, ideias para conseguir mudar os modelos económicos [1].
A situação actual está cheia de imprevistos, também de ordem económica, a partir da invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin e também das suas ameaças cada vez mais loucas.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] Agência Ecclesia, 18/7/2019; cf. também Manuel Brandão Alves (7Margens, 20/9/2022)

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue