segunda-feira, 16 de maio de 2022

Derrubar ou construir muros?

Crónica de Bento Domingues 
no PÚBLICO

Neste momento e apesar dos esforços do Patriarca Bartolomeu e do Papa Francisco, os cristãos não se mostram só incapazes de fazer a paz entre a Rússia e a Ucrânia, como são eles próprios que estão em guerra, levantando muros cada vez mais altos.

1. Os cronistas da actualidade nem sempre precisam de recorrer ao passado. Não é o meu caso. Por devoção e obrigação, procuro praticar a contínua correlação crítica entre o complexo acontecer do presente e os textos do Novo Testamento, situados no tempo e na geografia em que nasceram e tendo em conta a situação actual dos estudos bíblicos e as novas interpretações da Bíblia na Igreja. Já foi dito que as próprias Escrituras crescem com as leituras que delas se vão fazendo ao longo do tempo. Um célebre autor protestante dizia que o teólogo deve ter numa mão a Bíblia e na outra o jornal, simbolicamente, o vai-e-vem contínuo entre o passado e o presente.
Quando leio os Actos dos Apóstolos, que acontece frequentemente – e, agora, é leitura contínua neste tempo pascal, apresentada em fragmentos aos Domingos, – vem-me sempre à ideia de que é um livro que ficava muito bem em Banda Desenhada.
Dizemos que se ocupa das aventuras dos começos da história do cristianismo. Paulo com as suas peripécias, por causa do cuidado de todas as igrejas suscitadas por ele, é a principal figura desta obra notável.
Na 2.ª Carta aos Coríntios, ele próprio narrou, em sua defesa e da forma mais irónica e desabrida, o que lhe foi acontecendo: “Ninguém me tenha por insensato, ou então, aceitai-me como insensato, para que também eu possa gloriar-me um pouco. O que vou dizer, não o digo segundo o Senhor, mas como num assomo de insensatez, certo de que tenho motivos para me gloriar. Já que muitos se gloriam por motivos humanos, também eu o vou fazer. Na verdade, tão sensatos como sois, suportais de bom grado os insensatos. Suportais quem vos escraviza, vos devora, vos explora, vos trata com arrogância, vos esbofeteia. Para nossa vergonha o digo: como fracos nos mostramos. Mas daquilo de que alguém se faz forte – eu falo como insensato – também eu me posso fazer. São hebreus? Também eu. São israelitas? Também eu. São descendentes de Abraão? Também eu. São ministros de Cristo? – Falo a delirar – eu ainda mais. Muito mais pelos trabalhos, muito mais pelas prisões, imensamente mais pelos açoites, muitas vezes em perigo de morte. Cinco vezes recebi dos Judeus os quarenta açoites menos um. Três vezes fui flagelado com vergastadas, uma vez apedrejado, três vezes naufraguei e passei uma noite e um dia no alto mar. Viagens a pé sem conta, perigos nos rios, perigos de salteadores, perigos da parte dos meus irmãos de raça, perigos da parte dos gentios, perigos na cidade, perigos no deserto, perigos no mar, perigos da parte dos falsos irmãos! Trabalhos e duras fadigas, muitas noites sem dormir, fome e sede, frequentes jejuns, frio e nudez! Além de outras coisas, a minha preocupação quotidiana, a solicitude por todas as igrejas! Quem é fraco, sem que eu o seja também? Quem tropeça, sem que eu me sinta queimar de dor? Se é mesmo preciso gloriar-se, é da minha fraqueza que me gloriarei. O Deus e Pai do Senhor Jesus, que é bendito para sempre, sabe que não minto. Em Damasco, o etnarca do rei Aretas mandou guardar a cidade dos damascenos para me prender. Mas fui descido num cesto, por uma janela, ao longo da muralha, e assim escapei das suas mãos” [1].
Neste autorretrato, não pode falar dos seus companheiros nessas aventuras. Essa é a matéria do livro dos Actos que é preciso ler na íntegra. Aqui, só destaco alguns passos do nascimento do universalismo cristão.

2. Era normal que Paulo e companheiros tivessem começado por mostrar aos outros judeus que o Nazareno crucificado não era um derrotado. Tinham-se enganado acerca do verdadeiro messias. Podiam, no entanto, como lhe aconteceu a ele, converter-se ao caminho, à verdade e à vida de Jesus. Era por essa razão que tentavam, em todas as situações e nas próprias sinagogas, mostrar a novidade e a verdade que Ele representava, com razoável sucesso. Era um judaísmo cristão que estava a nascer.
Pedro foi pioneiro de uma viragem decisiva sem se dar conta: “quando principiei a falar, o Espírito Santo desceu sobre eles [os gentios], como sobre nós, ao princípio. Recordei-me, então, da palavra do Senhor, quando Ele dizia: João baptizou em água; vós, porém, sereis baptizados no Espírito Santo. Se Deus, portanto, lhes concedeu o mesmo dom que a nós, por terem acreditado no Senhor Jesus Cristo, quem era eu para me opor a Deus? Estas palavras apaziguaram-nos e eles deram glória a Deus, dizendo: Deus também concedeu aos gentios o arrependimento que conduz à Vida!” [2].
Este apaziguamento foi sol de pouca dura, porque nem todos concordavam com a narrativa de Pedro. Entretanto, o cenário complica-se. Paulo entra em acção: contou ele aos cristãos de Antioquia, de onde tinha partido, um acontecimento extraordinário: o que Deus fizera com eles [discípulos] e, sobretudo algo de espantoso, como abrira aos gentios a porta da fé [3]. Deixo para outra crónica a problemática que provocou o primeiro concílio da Igreja nascente. Não posso, no entanto, esquecer que foi também em Antioquia que, pela primeira vez, os discípulos começaram a ser tratados pelo nome de cristãos.

3. Como diz a Carta aos Efésios, foi longo o caminho para derrubar o muro que separava os judeus dos gentios: “Lembrai-vos de que nesse tempo estáveis sem Cristo, excluídos da cidadania de Israel e estranhos às alianças da promessa, sem esperança e sem Deus no mundo. Mas em Cristo Jesus, vós, que outrora estáveis longe, agora, estais perto, pelo sangue de Cristo. Com efeito, Ele é a nossa paz, Ele que, dos dois povos, fez um só e destruiu o muro de separação, a inimizade: na sua carne, anulou a lei, que contém os mandamentos em forma de prescrições, para, a partir do judeu e do gentio, criar em si próprio um só homem novo, fazendo a paz e para os reconciliar com Deus, num só Corpo, por meio da cruz, matando assim a inimizade” [4].
Nunca devemos esquecer esta grande referência cristã. Ela significa que aquilo que parece impossível pode tornar-se realidade.
Nunca devemos esquecer esta grande referência cristã. Ela significa que aquilo que parece impossível pode tornar-se realidade
Ao longo da história, foram muitas as rupturas entre aqueles que se dizem cristãos. Desde o século XIX, o movimento ecuménico tem tentado a união dos cristãos nas suas diferenças. Neste momento e apesar dos esforços do Patriarca Bartolomeu e do Papa Francisco, os cristãos não se mostram só incapazes de fazer a paz entre a Rússia e a Ucrânia, como são eles próprios que estão em guerra, levantando muros cada vez mais altos.
Diz-se que as guerras nascem de muitas causas, mas sobretudo do instinto de mandar, de dominar e de se apropriar daquilo que é de todos. Com elas ganham os fabricantes e os comerciantes de armamentos cada vez mais sofisticados e destruidores. Se desejássemos trabalhar para estancar as fontes da violência, que provocam cada vez mais violência, seria possível responder facilmente, a nível local e mundial, ao que falta às populações em termos de habitação condigna, em educação e investigação para o acesso de todos aos melhores serviços de saúde.
Será possível mudar a cultura do ódio em cultura da paz?

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] 2Cor 11, 16-33. Ver também o cap. 12 sobre as suas experiências místicas
[2] Act 11, 15-18
[3] Act 14, 21-27
[4] Ef 2, 11-16

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue