Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO
Devemos reflectir sobre a prática actual da nomeação dos bispos e encontrar mecanismos, mais explicitamente sinodais, para incluir os fiéis nos processos de discernimento das nomeações episcopais
1. Quando se pede, a certas pessoas, uma informação ou uma opinião, a resposta é sempre a mesma: não sei nem quero saber e tenho raiva de quem sabe.
Se não fosse uma brincadeira, seria uma recusa definitiva de aprender. Quem nunca se engana pode repousar, para sempre, na sua ignorância. Sente-se dispensado de investigar, de estudar e também dispensa assessores. Ficará sempre infalivelmente ignorante.
Quando, no Vaticano I (1870), foi definida a chamada infalibilidade papal, para muitas pessoas, isto equivalia a dizer: sabe tudo e não precisa de aprender, de investigar e, como é crente, pensa que o Espírito Santo o defenderá de todo o erro. Alguém reagiu que, com tanta infalibilidade, já não seria preciso reunir mais concílios ecuménicos. As bibliotecas podiam ser queimadas e encerrar, definitivamente, todas as faculdades de teologia. Bastava uma central telefónica ligada à infalibilidade pontifícia.
Para quem tenha estudado essa decisão conciliar, sabe que não era esse o sentido, embora não deixe de levantar muitas interrogações que nunca foram respondidas de forma totalmente satisfatória [1]. No entanto, talvez não sejam essas discussões que mais preocupam o Papa Francisco.
Ele sabe que não sabe tudo e, por isso, não tem dificuldade em dizer não sei, mas instiga e encoraja, não paralisa, a investigação em todos os domínios. Como não sabe, procura escutar e fazer da escuta um comportamento eclesial. Dessa escuta recíproca, pode nascer uma nova forma de ser humano, de ser religioso, de ser cristão. Sabe, por outro lado, que não pode fazer tudo sozinho e, por isso, não tem problema nenhum em rever as tarefas de uma Cúria em reforma e descentralizar o governo da Igreja para os bispos, para os párocos, para os leigos. O movimento sinodal é a pirâmide invertida. Como desejava Yves Congar desde o Vaticano II (1963-1965), o tridentinismo, mesmo com muitos ziguezagues, perdeu força, mas ainda não está totalmente vencido.
Não me admira que haja membros da Igreja Católica que recusem as novas orientações deste Papa. Também não me admira que seja considerado a figura de referência, para crente e não crentes, a nível mundial. Ele, porém, não cultiva a “devoção ao Papa”. Não procura os aplausos e que as pessoas estejam centradas nele. Por isso, relançou o movimento eclesial de saída para todo o género de periferias. Em vez de aplausos, estimula as pessoas a centrarem-se nos doentes, nos pobres, nos refugiados, nos descartados.
2. Já muitos escreveram que este Papa pôs a Igreja a mexer. Para uns, já mexe de mais; para outros, era preciso um decreto de mudanças de estruturas e mentalidades, isto é, o contrário de uma reforma profunda que envolve mudanças interiores que façam da reforma o fruto de uma sementeira, onde há trigo e joio. O grão de mostarda pode tornar-se um arbusto, mas não é uma floresta. Um pouco de fermento, pode levedar toda a massa, mas é sempre em pequenas porções. São parábolas de esperança, não são dogmas.
Neste momento, já existem cristãos militantes, fervorosos, que começam a recear, depois do tempo da pandemia, propostas sobre propostas, com datas muito próximas umas das outras e em preparação simultânea: Jornada Mundial da Juventude 2023, Sínodo da Igreja 2023, Jubileu 2025 e, em Junho de 2022, o X Encontro Mundial das Famílias.
Estas experiências em curso, por si mesmas, não se contradizem nem se anulam, podem tornar-se todas formas de sinodalidade. O princípio básico, defendido pelo Papa Francisco e pela Comissão Teológica Internacional (CTI), já vem da Idade Média: o que diz respeito a todos deve ser tratado e aprovado por todos (Quod omnes tangit, ab omnibus tractari et approbari debet).
3. Este princípio desafia o paternalismo clerical que não será fácil sem uma reconsideração profunda da relação estrutural do bispo com o seu “rebanho”. Isto é essencial na Igreja Católica.
Com a estruturação actual, o episcopado está, em grande medida, desvinculado da Igreja local. O teólogo dominicano Hervé-Marie Legrand vem chamando a atenção, desde há muito tempo, para um defeito que impede a plena realização da visão eclesial mais ampla do Vaticano II.
Legrand identificou duas teologias do episcopado concorrentes: uma baseada no serviço concreto de uma Igreja local; e outra que o vincula, simplesmente, ao colégio episcopal, sem qualquer relação visível a uma Igreja local, concreta.
A estrutura actual do episcopado atenuou, de forma dramática, a relação do bispo com a sua Igreja local. Tenha-se em conta que quase 40% dos bispos actuais – todos os diplomatas eclesiásticos ordenados, muitos burocratas do Vaticano e todos os bispos auxiliares – estão assignados a uma sede titular, isto é, a uma diocese que antes existia e que, hoje, já não existe! Deste modo, tecnicamente, cada bispo é ordenado para servir uma Igreja local, ainda que esta Igreja local não tenha nenhum membro vivo. Como poderá este costume não tornar trivial, insignificante, a relação do bispo com o seu “rebanho"?
A necessária relação do bispo com o seu “rebanho” encontra-se ainda mais debilitada pelo costume, praticamente universalizado, do século XIX, pelo qual, o Vaticano nomeia os bispos das dioceses com uma mínima participação das próprias Igrejas locais.
Esta prática, apesar do ensino conciliar em sentido contrário (LG 27), reforça a impressão de que os bispos são meros delegados do Papa. Por último, é preciso reconhecer a mudança de um bispo de uma sede para outra, por vezes, como uma forma de simples promoção eclesiástica.
Uma das convicções mais partilhadas do cristianismo primitivo referia-se ao direito da Igreja local participar na nomeação do seu bispo, quer por eleição ou aclamação. Num dos primeiros textos que incluem um ritual de ordenação, do século III, atribuído frequentemente a Hipólito de Roma, Tradição Apostólica, encontramos uma insistência em que o bispo seja eleito pelo seu povo. Quase dois séculos mais tarde, o Papa Celestino I (422-432) ainda podia declarar: Não se imponha ao povo um bispo que ele não quer. O Papa Leão Magno (440-461) insistia: Quem preside a todos deve ser eleito por todos.
Esta antiga convicção deveria inspirar uma reflexão sobre a prática actual da nomeação dos bispos e encontrar mecanismos, mais explicitamente sinodais, para incluir os fiéis nos processos de discernimento das nomeações episcopais.
Uma ordenação episcopal não deveria ser uma promoção honorífica ou eclesiástica, mas um chamamento à liderança pastoral de uma Igreja local. Nem mais nem menos [2].
Um Papa, que não sabe nem pode tudo, não dispensa ninguém de participar na construção da sociedade e da Igreja: o que diz respeito a todos deve ser tratado e aprovado por todos.
P.S.: A loucura da guerra e das ameaças de mais guerra regressaram à Europa. Precisamos de todos para fazer a paz.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Cardinal Yves Congar, Église et Papauté. Regards historiques, Cerf, Paris, 2002, pp. 307-315
[2] Cf. Richard R. Gaillardetz, La forma sinodal del ministerio y del orden en la Iglesia, in Selecciones de Teología, nº 240, 2021, pp. 293-300.