no PÚBLICO
O Papa Francisco não manifesta muito apreço pelo reino das abstracções. Os seus textos referem-se sempre a situações concretas que procuram socorrer o presente e abrir o futuro.
1. O Natal de Jesus de Nazaré inspirou, em todas as épocas, as mais belas obras de arte – música, literatura, pintura, arquitectura – e é possível encontrar nelas uma fonte de alegria porque, como diz Emir Kusturica, a felicidade produzida pela arte é o maior feito dos seres humanos [1]. Inspirou, sobretudo, uma nova arte de viver.
Como escreveu Frederico Lourenço, na Introdução aos Quatro Evangelhos [2], “Na segunda metade do século I da era cristã, o manancial (já de si tão rico) de textos em língua grega veio a enriquecer-se ainda mais com o aparecimento de quatro textos que mudaram para sempre a História da Humanidade. Nesses textos, o leitor escolarizado da época ter-se-ia confrontado com uma temática muito diferente da que conhecia de Homero, Sófocles ou Platão. Pois nestes quatro textos não se falava das façanhas heróicas de reis e de guerreiros, nem se reportavam as conversas de aristocratas atenienses com o lazer e o dinheiro para se dedicarem à filosofia. Aqui falava-se de pescadores e de leprosos; falava-se de pessoas desprezadas pela baixa condição na sociedade, pelas suas deficiências físicas, pelos seus problemas de saúde mental; falava-se de figuras femininas que não eram as rainhas e princesas da epopeia e da tragédia gregas, mas sim mulheres normais da vida real (a queixarem-se da lida da casa ou a exercerem, talvez, a mais antiga profissão do mundo). Acima de tudo, nestes quatro textos falava-se de certo homem, filho de um carpinteiro nazareno: um homem carismático, cheio de compreensão por todo o tipo de sofrimento humano; um homem que, apesar de não ter praticado qualquer crime, acabou por morrer crucificado como se fosse um criminoso, no meio de dois ladrões. Esse homem – que muitos foram reconhecendo como “Ungido” (Khistós: Cristo) de Deus e até como Filho de Deus – era portador da mais extraordinária das mensagens, transmitida com palavras simples, por vezes sob a forma de pequenas histórias singelas, compreensíveis em qualquer aldeia”.
“Por terem sido escritos num grego despretensioso, sem vestígio da sumptuosidade verbal dos grandes autores helénicos, é provável que estes quatro textos nem merecessem ao leitor culto da época o alto estatuto de literatura. No entanto, estes textos conquistaram o mundo antigo, tanto grego como romano. Lendo-os dois mil anos depois, não é difícil perceber porquê. Sobre um desses textos já se escreveu que se trata do ‘mais divino de todos os livros divinos': na verdade, essa descrição assenta a qualquer um deles. São textos que – com a sua mensagem sublime veiculada por palavras cuja beleza desarmante ainda deixa arrepiado quem os leu e releu ao longo de uma vida inteira – estão simplesmente numa categoria à parte”.
Não se podia dizer melhor. Jesus não deixou nada escrito e os escritos acerca de Jesus não são biografias. Não são reportagens. Recolhem testemunhos de pessoas e comunidades que foram transformadas ao seu contacto. Esses escritos mostram que os discípulos tiveram muita dificuldade em entender o sentido da intervenção de Jesus. Procuravam uma figura e um caminho que nada tinham a ver com o Nazareno. O Mestre teve de lhes dizer: não há poder nenhum de dominação para ninguém. Quem procura poder seja o primeiro a servir, porque o filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida por todos. A história das Igrejas cristãs repetiu, muitas vezes, o equívoco dos discípulos, mas também tem encontrado pessoas e grupos que nasceram de novo e, quando parece que está tudo perdido, retomam o caminho de Jesus com o seu Espírito.
2. Vivemos, neste momento, o mesmo desafio – nascer de novo – para semear esperança de que a transformação do mundo, na linha da mensagem de Jesus, é necessária e é possível. Podemos também repetir: a tarefa é imensa e os operários para esse mundo novo são poucos, muito poucos. O Papa Francisco tem mais admiradores do que seguidores, mas nem por isso, Francisco desarma.
Estes quatro textos, de há dois mil anos, não foram escritos para nos atar ao passado, àquele tempo. Tomás de Aquino estava convencido e teve a ousadia de dizer: o que aconteceu há dois mil anos atinge todos os tempos e lugares. Cristo está vivo. São textos para dizerem como é que podemos mudar a nossa vida e não, apenas, a dos seus discípulos de há dois mil anos. Um credo fundamental foi encontrado por um autor pagão: em Deus vivemos, nos movemos e existimos [3].
Da Primeira Carta de S. João, chegou-nos algo de extraordinário: “O que existia desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida. (…) Isto vos escrevemos para que a nossa alegria seja completa” [4]. É um passado que não passa. O cristianismo só tem sentido se abrir portas e janelas para o mundo da alegria.
Acusam Bergoglio de trair a autêntica tradição católica. Por isso, não o consideram verdadeiro Papa. Esta acusação parte de uma confusão entre Tradição e tradições e, muitas delas, estão em contradição com o Evangelho de Jesus Cristo. O que o Papa procura é, precisamente, recuperar a Tradição viva, submergida por tradições e costumes que a ocultam.
O Papa Francisco não manifesta muito apreço pelo reino das abstracções. Os seus textos referem-se sempre a situações concretas que procuram socorrer o presente e abrir o futuro. Destaco, apenas, três documentos: o seu manifesto, Evangelii Gaudium, sobre a alegria do Evangelho, a esperança dum renascimento dos escombros da história, o início dum futuro luminoso; Laudato Si’ sobre uma ecologia integral para salvar a Casa Comum, a casa de todos; Fratelli Tutti que recupera o que há de mais genuíno e profundo: a fraternidade. A Idade Moderna consagrou a famosa trilogia – liberdade, igualdade e fraternidade –, mas é, precisamente, a fraternidade que falta fazer, não é só uma bela palavra.
3. A 8 de Dezembro de 1967, o Papa Paulo VI escreveu uma mensagem propondo a criação do Dia Mundial da Paz, a ser festejado no dia 1 de Janeiro de cada ano. Mas o Papa não queria que a comemoração se restringisse apenas aos católicos – para ele, a verdadeira celebração da paz só estaria completa se envolvesse todos os seres humanos. De facto, foi João XXIII que escreveu um verdadeiro manifesto pela Paz, dirigido a todos os seres humanos de boa vontade, a famosa Pacem in Terris (1963). O fundamento da Paz era a busca da verdade, na justiça, no amor e na liberdade, num momento em que a comunidade internacional parecia estar na direcção do terceiro conflito mundial.
Este ano, o Papa Francisco entrou e reforçou essa dinâmica com a espantosa mensagem: Diálogo entre gerações, educação e trabalho: instrumentos para construir uma paz duradoura.
É uma leitura obrigatória acerca do essencial. Com a paz tudo é possível, com as guerras, só destruição. Perante as ameaças, temos de fazer um Bom Ano!
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Cf. Ípsilon – PÚBLICO !7/2/2021
[2] Frederico Lourenço, Bíblia, Volume I, Novo Testamento. Os Quatro Evangelhos, tradução do grego, Quetzal 2016
[3] Act 17, 28
[4] 1Jo 1, 1-4