no Diário de Notícias
O meu querido amigo Herbert Haag, talvez o maior exegeta católico do século XX, morreu fez este ano 20 anos: "partiu" no dia 23 de Agosto de 2001. Era realmente um dos maiores especialistas em ciências bíblicas, até porque dominava, para lá do latim e do grego, o hebraico, o aramaico, o ugarítico, o árabe...
O mistério da morte é que se parte sem deixar endereço. Ele acreditou, e eu com ele, que na morte não cairia no nada; pelo contrário, entraria em plenitude no mistério da infinita misericórdia de Deus, o Deus bom e amável, que Jesus anunciou por palavras e obras. Mas como é ninguém sabe. A morte é o mistério pura e simplesmente. O Absoluto tem duas faces: precisamente a morte e Deus.
Ficou a obra (Liberdade aos cristãos e A Igreja católica ainda tem futuro? estão traduzidos em português), a amizade, a saudade. Saudade, essa palavra que só a língua portuguesa tem e que, se tiver a sua raiz no latim salutem dare, donde vem também saudar, exprime o desejo de que, esteja onde estiver, esteja bem. Se a ligação for com solitate, então exprime a tristeza de quem está só porque o amigo já não está e faz-nos falta.
Quando nos encontrávamos, íamos almoçar. E Herbert Haag, professor emérito da Universidade de Tubinga, encomendava sempre um vinho francês ou italiano excelente. E a conversa desdobrava-se para longe e na profundidade. Recordo todos esses diálogos iluminantes para mim. Aí fica algo do muito que lhe ouvi: "De certeza que Jesus não queria que um homem só governasse do ponto de vista religioso mais de mil milhões de pessoas. De certeza que também não queria que as mulheres fossem discriminadas. Jesus queria uma Igreja de discípulas e discípulos, uma Igreja fraterna e não uma Igreja com duas classes: clero e leigos." "Contra a vontade de Jesus, embora os leigos representem mais de 99% da Igreja e o clero menos de 1%, é o clero que tem tudo a dizer." "Durante trezentos anos aquilo que alegadamente só um sacerdote ordenado pode fazer, concretamente presidir à Eucaristia, foi feito por leigos, nomeadamente pelo dono ou a dona da casa onde os cristãos se reuniam para celebrar a Ceia do Senhor. Assim, porque é que o que então foi possível não há-de sê-lo também hoje?" "A lei do celibato imposto aos padres como obrigatório é contra a vontade de Jesus e tem provocado numerosos escândalos sexuais." "Hoje sabemos que o Homem apareceu por evolução. Portanto, também não houve nenhum pecado original que seria apagado pelo baptismo." "O bem e o mal pertencem à constituição desta criação. O mal moral vem do coração humano, e é preciso combater o mal com o bem." "Segundo a Bíblia, não se pode afirmar a existência do diabo. Já é tempo de acabar com os exorcismos, que são uma relíquia da Idade Média." "No "Cântico dos Cânticos" bíblico exalta-se o amor sexual de dois não casados." "O que está no Novo Testamento é que nos confessemos uns aos outros." "Se a sexualidade é um direito humano, então, quando um ser humano só pode viver a sua sexualidade de maneira homossexual, isso deverá ser-lhe permitido." "A presença de Jesus na Eucaristia não pode ser concebida de modo coisista. Não se legitima, pois, a adoração ao Santíssimo." "O problema na Igreja é que o padre tem medo do bispo, o bispo tem medo do papa, o papa tem medo da verdade." "A imagem de Deus no homem é a liberdade". "O Reino de Deus é já aqui." Sobre a divindade de Jesus dizia: "Jesus não é o Deus (hò Theós). Em Jesus está Deus. Deus identifica-se de modo especial com Jesus." Sobre a relação corpo e espírito, ouvi-o dizer: "Na evolução, o corpo humano desenvolve-se até ser possível ter possibilidades espirituais."
Um amigo pediu-me para lhe perguntar se acreditava na vida eterna. Ele respondeu-me: "Diga a esse amigo que sim. Na morte não cairei no nada, pois acredito que serei acolhido pessoalmente no mistério de Deus. Qual é o modo como isso acontecerá não sei. Ninguém sabe."
Como dou notícia no meu mais recente livro, O Mundo e a Igreja. Que Futuro?, um dos meus encontros com ele foi numa Sexta-Feira Santa em sua casa, em Lucerna. Conversámos longamente sobre Jesus, a Sua história, os Seus desígnios, a Sua missão, o Seu Evangelho, a Sua morte e ressurreição, a Sua Igreja. Até foi nesse encontro que ele me pediu para ir buscar o Evangelho segundo São João em grego e ler aquele passo: "Àqueles e àquelas a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados", e reparei então que Jesus não disse isso aos Apóstolos, mas aos discípulos (oì mathetai). Conversámos enquanto partilhávamos uma refeição ao anoitecer, uma refeição com pão, queijo e bom vinho. Já noite dentro, à saída para o hotel, perguntei-lhe em afirmação: "Professor, foi uma Eucaristia." E ele, serenamente: "Claro que foi."
Perto de morrer - contou-me o teólogo Hans Küng, que faleceu neste ano de 2021, como aqui referi em várias crónicas -, mandou chamar precisamente o seu amigo Küng - tinham sido colegas na Universidade de Tubinga -, confessou-se, comungou e rezaram a ladainha da boa morte.
Em Janeiro do ano 2000, o seu bispo, o bispo de Basileia, retirou-lhe a confiança. Mas no testamento ficou escrito: "Morro como filho da Igreja Católica, à qual me liga uma dívida de gratidão sem limites, mas na qual também tive muito sofrimento."
Se mais alguma vez for a Lucerna na Suíça, já não irei bater à porta do número 26 da Haldenstrasse. O meu amigo teólogo Herbert Haag já lá não mora. Mas creio firmemente que havemos de reencontrar-nos.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia