no PÚBLICO
Segundo a dinâmica que, hoje, nos pede a Igreja, não é só com esmolas que se organiza a esperança. Trata-se de a traduzir diariamente em vida concreta nas relações humanas, no compromisso sociopolítico.
1. Quando era criança e adolescente, sabia muito bem quem eram os pobres. Eram homens, de saco às costas, que vinham de longe – ninguém sabia ao certo a sua origem – e batiam às portas dos moradores das aldeias serranas. Rezavam pelas almas dos seus antepassados. A minha avó insistia para que cantassem, porque cantar é rezar duas vezes. A ninguém se recusava a esmola tirada das coisas que todos cultivavam numa duríssima economia de subsistência. Havia uma família que tinha um bocado mais de terra e gado. Não havia pobre que batesse à sua porta e não fosse acolhido à mesa da família que também dispunha de um palheiro onde podiam pernoitar. Eram chamados “os pobres do Malheiro”. Uns ficavam uns dias; outros, antes de continuarem viagem, ofereciam-se para acompanharem livremente os trabalhos de quem tão generosamente os recebia.
O que, de facto, valia a todas as famílias, eram os que emigravam para atenuar a pobreza daquelas aldeias. Verifiquei mais tarde o que era a sorte dos que tinham de lutar, na emigração, para não ficarem mal vistos nas terras de origem. Agora, muito desse mundo rural, vai morrendo.
A pobreza e a desigualdade, apesar do desenvolvimento científico e técnico e das lutas sociais e suas organizações, parecem confirmar um dito do Evangelho: “pobres sempre tereis entre vós”, como se essas situações fossem uma fatalidade. Não era nada o sentido da afirmação evangélica como mostra o capítulo 25 do Evangelho de Mateus. Somos todos, de modos diferentes, responsáveis pela situação em que se encontra o mundo dos marginalizados, das pessoas empobrecidas e abandonadas. É a situação daqueles que o Evangelho chama nossos irmãos, que o Papa Francisco retomou na encíclica Fratelli tutti e que a Fundação do mesmo nome quer que se torne um laboratório do futuro[1].
2. Desde há cinco anos, o penúltimo Domingo do ano litúrgico ficou consagrado como Dia Mundial dos Pobres[2]. À primeira vista até pode dar a ideia de uma designação conformista: os pobres também têm o seu dia.
O melhor é dar a palavra ao Papa que, no passado dia 12, explicou, na Reunião de orações e testemunhos, promovida pela Associação Fratello em Assis, como nasceu essa iniciativa. Diz textualmente: Agradeço-vos, porque viestes de tantos países para viver esta experiência de encontro e de fé. Gostaria de dar graças a Deus que inspirou esta ideia do Dia dos Pobres. Uma ideia nascida de uma forma bastante estranha, numa sacristia. Estava prestes a celebrar a Missa e um de vós – o seu nome é Étienne – sabeis quem é? Um enfant terrible. Étienne deu-me a sugestão: façamos o Dia dos Pobres. Saí e senti que o Espírito Santo, no meu íntimo, estava a dizer-me para o realizar. Foi assim que começou: pela coragem de um de vós de levar as coisas em frente. Agradeço-lhe pelo trabalho ao longo dos anos e pelo trabalho de tantos que o acompanham.
De facto, já é tempo de os pobres terem novamente uma palavra a dizer, porque durante demasiado tempo as suas exigências não foram ouvidas. É tempo de abrir os olhos e ver o estado de desigualdade em que vivem tantas famílias. É tempo de arregaçar as mangas para restituir a dignidade através da criação de empregos. É tempo de se voltar a escandalizar com a realidade de crianças famintas, escravizadas, náufragas, vítimas inocentes de todo o tipo de violência. É tempo de acabar com a violência contra as mulheres e de as mulheres serem respeitadas e não tratadas como mercadoria. É tempo de quebrar o círculo da indiferença e descobrir a beleza do encontro e do diálogo. Chegou a hora de nos encontrarmos. É o momento do encontro. Se a humanidade, se nós, homens e mulheres, não aprendermos a encontrarmo-nos, estamos a caminhar para um fim muito triste.
No Domingo passado, na Basílica de S. Pedro, este Papa voltou, de outra maneira, ao mesmo tema. O Evangelho ajuda-nos a ler a história, se olharmos bem para os seus dois aspectos: as dores de hoje e a esperança de amanhã. Por um lado, evocam-se todas as dolorosas contradições em que a realidade humana vive imersa em cada tempo; por outro, afirma-se que há um futuro de salvação.
E hoje, é como se a Igreja nos dissesse: Pára e semeia esperança mesmo no seio da pobreza. Aproxima-te dos pobres e semeia esperança.
Confessou: Recentemente voltou-me à mente aquilo que costumava repetir D. Tonino Bello, um bispo próximo dos pobres e ele mesmo pobre em espírito: Não podemos limitar-nos a esperar, devemos organizar a esperança. Se a nossa esperança não se traduzir em opções e gestos concretos de atenção, justiça, solidariedade, cuidado da casa comum, não poderão ser aliviados os sofrimentos dos pobres, não poderá ser modificada a economia do descarte que os obriga a viver à margem, não poderão florescer de novo os seus anseios. Compete-nos, especialmente a nós cristãos, organizar a esperança – é uma linda expressão, esta de Tonino Bello: organizar a esperança! Isto é, traduzi-la diariamente em vida concreta nas relações humanas, no compromisso sociopolítico. Segundo a dinâmica que, hoje, nos pede a Igreja, não é só com esmolas que se organiza a esperança.
3. Hoje, Jesus oferece-nos uma imagem simples e ao mesmo tempo sugestiva da esperança: é a imagem das folhas da figueira, que desabrocham sem fazer ruído, assinalando que o Verão está próximo. E estas folhas aparecem – sublinha Jesus –, quando o ramo se torna tenro[3]. Irmãos, irmãs, aqui está a palavra que faz germinar a esperança no mundo e alivia a dor dos pobres: a ternura. Compaixão que te leva à ternura. Depende de nós superar o fechamento sobre si mesmo, a rigidez interior, que é a tentação de hoje, dos “restauracionistas” que querem uma Igreja ordenada e rígida. Isto não é do Espírito Santo. Devemos fazer germinar, mesmo dessa rigidez, a esperança. Também depende de nós vencer a tentação de nos ocuparmos apenas com os nossos problemas. É a condição para nos enternecermos com os dramas do mundo e com as suas dores.
À semelhança das folhas tenras da árvore, somos chamados a absorver a poluição que nos rodeia e transformá-la em bem: não adianta falar dos problemas, polemizar, escandalizar-nos… Isto, todos sabemos fazer! O que adianta é imitar as folhas que, sem chamar a atenção, todos os dias transformam o ar poluído em ar puro. Jesus quer-nos conversores de bem: pessoas que, imersas no ar pesado que todos respiram, respondem ao mal com o bem[4]. São pessoas que agem: partilham o pão com os famintos, trabalham pela justiça, elevam os pobres e devolvem-lhes a sua dignidade, como fez um certo samaritano[5].
É, de facto, uma linda expressão, esta de organizar a esperança! A sua poética não é contemplativa. Depende do que fizermos, dia a dia, nas relações humanas, no compromisso sociopolítico e no cuidado da Casa Comum. Os pobres não podem ficar à porta porque é deles o centro da Igreja.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Cf. Manuel Pinto, 7Margens, 22. 10. 2021
[2] Para não multiplicar as citações, recolhi, neste texto, passagens das intervenções do Papa Francisco em torno do Dia dos Pobres, desde Assis à Basílica de S. Pedro.
[3] Mc 13, 28
[4] Cf. Rm 12, 21
[5] Lc 10, 29-37