no PÚBLICO
Papa e Edgar Morin |
A encíclica Fratelli Tutti é o livro da nossa identidade, servida ou traída. É o grande tratado prático de antropologia dos começos do século XXI.
1. Já foi dito, de muitos modos, que o ser humano nasce prematuro. Para estar pronto para a vida, seria preciso, não apenas nove meses, no seio da mãe, mas vinte. Como isso não é possível, os pais têm de contar, à partida, com a fragilidade da criança. Somos frágeis por natureza, não nascemos prontos, equipados para enfrentar os desafios da vida, como acontece com outros animais. Isto não tem só inconvenientes. O ser humano forja-se, desde o nascimento, como relação, num face-a-face carinhoso.
A sua natureza é dotada, no entanto, de capacidades de conhecimento e afecto a desenvolver, com os outros, em culturas inventivas de interajuda ou em astúcias da vontade de dominação, traindo a sua condição original. Em ambos os casos, será sempre um ser frágil e incompleto que tem de se realizar ou destruir-se com os outros. A sua autonomia não se realiza pelo isolamento, mas pelo reconhecimento das outras autonomias fraternas, pois será sempre uma autonomia relativa. Descobrirá que o seu passado começou pelo acolhimento de um dom. Quando se toma verdadeiramente consciência dessa condição fundamental, podemos receber também a suprema iluminação: tenho de fazer da minha vida um dom.
No Evangelho de S. João, Jesus apresentou o sentido da sua missão com a metáfora do bom pastor, aquele que cuida. Mas o bom pastor não cuida apenas das ovelhas bem-comportadas. Não descansa enquanto não encontra as extraviadas. O que lhe interessa é que todas tenham vida e vida em abundância. Ele próprio vive na consciência de uma relação que o constitui e o alimenta: assim como o Pai me conhece, Eu conheço o Pai [1]. Essa relação filial é a fonte da sua vida como dom aos outros e sempre a partir dos mais necessitados de reconhecimento e de ajuda.
Na história humana, algumas pessoas ficaram célebres pelos impérios que criaram, pelas fortunas que reuniram, pelos roubos que fizeram, pelas guerras que venceram, pelas escolas de desumanidade que multiplicaram. Não escutaram a voz da consciência nem a pergunta, raiz de todas as perguntas essenciais: Que fizeste do teu irmão? [2] Esta pergunta manifesta não só que somos uma relação de fraternidade irrestrita, mas também que a podemos trair, quando não reconhecemos o outro na sua diferença como um dom.
O Papa Francisco, ao escrever e difundir a Fratelli Tutti, condensou o que há de melhor em toda a história humana. É o livro da nossa identidade, servida ou traída. É o grande tratado prático de antropologia dos começos do século XXI. Tudo o que fez e disse está neste testamento de pura humanidade, para toda a humanidade. É a voz para que todos tenham voz livre e fraterna.
É possível que se diga que tudo isto não passa de lirismo piedoso. A mola do ser humano não seria a vontade de cooperar, mas o desejo de dominar. O egoísmo pessoal e de grupo é a alma do progresso. A cooperação é o recurso dos fracos e preguiçosos. Na rivalidade vencem os mais capazes.
2. No Domingo passado li, no PÚBLICO, uma entrevista de Teresa Firmino a Juan Luis Arsuaga, um grande paleoantropólogo espanhol, a propósito da publicação do seu livro em português: Vida, a Grande História. Uma Viagem pelo Labirinto da Evolução (Temas e Debates).
A jornalista começou por perguntar: Por que sentiu necessidade de escrever um livro sobre A Vida?
“É sobre as coisas que sempre pensei. São as perguntas da minha vida, que fiz ao longo da minha carreira. A evolução, a história da vida, costuma ser apresentada como um relato, como uma narrativa. Estou cansado de que seja contada como se fosse um conto. A física não tem uma estrutura narrativa. É geometria, matemática, onde não há relatos, não há história. Na química, não há história, há leis. A ciência não faz contos, faz perguntas. Este é um livro cheio de perguntas, as perguntas que eu me faço. Por que estamos aqui?, é a primeira. E todas as outras, como: por que temos consciência, quando apareceu a consciência?” Nesta entrevista existem muitas razões para agradecer. No âmbito desta crónica destaco a sua posição sobre o racismo, não pela sua originalidade, mas pela oportunidade: “Somos muito idênticos geneticamente e tão diferentes por fora. Mas isso é puramente epidérmico: o cabelo, a pigmentação… do ponto de vista do esqueleto, não há diferenças. Somos uma espécie muito recente, há muito pouca diferença, não houve tempo para nos diversificarmos. (…) A ciência disse, primeiro, que éramos muito diferentes e isso foi um erro com consequências políticas. De certo modo, a ciência, a antropologia, colaborou e deu argumentos a ideologias racistas. A ciência parte da sociedade. Mas a ciência demonstrou, finalmente, que todos os povos da Terra são idênticos. A moral e a ética podem dizer que todos devemos ser tratados de igual forma. Mas a ciência disse que somos iguais: esta é uma das grandes contribuições da ciência para o pensamento humano. Graças à ciência, sabemos que não há nenhum fundamento para as ideologias racistas.”
Demarca-se das correntes extremas do transumanismo tecnológico e pergunta: “Criar seres humanos inteligentes: o que é isso? Eu não sei. Dizem que [a manipulação genética] é para criar um ser humano superdotado que possa competir com as máquinas. (…) Alguém poderia dizer: ‘Mas isto não é o mesmo que diziam os nazis? Não ouvimos já isto antes?’”
Sobre a pandemia deixa um aviso: “O problema das civilizações que entram em colapso é a recorrência de uma catástrofe. O problema não é uma doença. O problema são muitas doenças. Por exemplo, o terramoto de Lisboa de 1755 não foi um problema para Lisboa. O Marquês de Pombal melhorou a cidade. Um terramoto com uma recorrência a cada cinco anos teria tornado Lisboa impossível. (…) A pandemia é uma desgraça, mas se for só esta não será um problema. Se vier com muita frequência um vírus como o anterior é que não há economia que sobreviva.
“Mas há razões para pensar que criámos as condições ideais para que haja pandemias com muita frequência e isso pode ser um problema. Vivemos cada vez mais em grandes cidades e podemos voar de uma cidade para outra. Criámos um planeta em que os vírus podem viajar à velocidade do avião. Temos de desenvolver uma civilização que controle isso.”
3. Na linha desta crónica, é preciso saudar os cem anos de Edgar Morin (08. Julho. 2021). Toda a sua vasta obra é feita de contributos para uma antropologia da complexidade. Para ele, a ciência deve desenvolver-se com consciência. Escreveu Os sete saberes necessários à educação do futuro. Como destaca o Card. Parolin, “A consciência de um destino comum para a humanidade, um destino frágil e ameaçado, atraiu toda a sua atenção, promovendo a necessidade de um processo de civilização dirigido a colocar no centro o ser humano e não o poder do dinheiro.”
Acabo de receber da Pastoral da Cultura uma fotografia admirável: Edgar Morin de mãos dadas com o Papa Francisco. Finalmente, a razão e a religião encontraram-se.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Cf. Jo 10, 10-15 [2] Gn 4, 9-12