no PÚBLICO
Todas estas três cartas exemplares ajudam, não apenas a uma nova visão da Igreja, mas ao seu exercício em actos e compromissos efectivos.
1. Há gestos, atitudes, acontecimentos que abrem um futuro de esperança, sem enterrar os crimes do passado e a responsabilidade actual de toda a Igreja. Não me vou referir às iniciativas e decisões corajosas e radicais do Papa Francisco, sobre a protecção de menores e pessoas vulneráveis na Igreja Católica, nem às resistências que têm encontrado na sua aplicação. Já existe muita informação disponível acerca dessa questão vergonhosa.
Vou limitar-me a três cartas exemplares: a justificação do pedido de renúncia do cardeal Reinhard Marx, arcebispo de Munique e Freising; o Papa, em vez de aceitar a renúncia, agradece a atitude do cardeal, confirma-o na sua missão e envolve toda a Igreja no pedido da graça da vergonha; o cardeal não resistiu à carta do Papa, que o comoveu.
Não vale a pena comentar essas cartas sem as conhecer. Como não podem ser apresentadas na íntegra, o melhor é dar a palavra aos intervenientes, no que julgo que têm de essencial. Todas elas ajudam, não apenas a uma nova visão da Igreja, mas ao seu exercício em actos, em tomadas de posição, em compromissos efectivos.
Comecemos pela carta do cardeal: “Na minha opinião, para assumir a responsabilidade, não basta reagir apenas quando os erros e omissões podem ser comprovados a partir dos autos dos processos. Em vez disso, como bispos, temos de deixar claro que nós também representamos a instituição da Igreja como um todo.
“Também não é aceitável relegar simplesmente essas denúncias ao passado e às autoridades eclesiásticas da época, “enterrando-as” dessa forma. Eu sinto a minha culpa e responsabilidade pessoais também pelo silêncio, pelas omissões e pelo foco excessivo na reputação da Igreja como instituição.
“Foi somente a partir de 2002, e cada vez mais a partir de 2010, que as vítimas de abuso sexual foram trazidas para o centro da questão de forma mais consistente, mas essa mudança de perspectiva ainda não foi completada. Negligenciar e desconsiderar as vítimas foram certamente a nossa maior falta do passado.
“Depois do estudo MHG [1], sobre o abuso sexual de menores, encomendado pela Conferência dos Bispos da Alemanha, eu afirmei na catedral de Munique que nós havíamos fracassado. Mas quem é esse “nós”? Eu também lhe pertenço. E significa que eu também tenho de tirar consequências pessoais, o que está a ficar cada vez mais claro para mim.
“Acredito que uma forma para expressar essa minha disposição de assumir a responsabilidade é a minha renúncia. Desta maneira, talvez possa enviar um sinal pessoal para um novo início, para um novo despertar da Igreja, não só na Alemanha. Quero mostrar que o foco não é o ministério, mas a missão do Evangelho. Isso também faz parte da pastoral. Portanto, peço-lhe com veemência que aceite a minha renúncia.”
Não era uma renúncia à colaboração com o Papa, como, aliás, manifesta na conclusão: “Continuo feliz por ser padre e bispo desta Igreja e continuarei a envolver-me nas questões pastorais, sempre que o senhor considerar útil e bom.”
2. O Papa Francisco, em vez de aceitar a renúncia, agradece a coragem do seu testemunho e confirma-o como arcebispo de Munique e Freising. O melhor é dar-lhe a palavra: “Diz-me que está a passar por um momento de crise. Não é apenas o seu caso, mas também a Igreja na Alemanha.
“É toda a Igreja que está em crise por causa do problema dos abusos. Hoje, a Igreja não pode dar um passo em frente sem assumir esta crise. A política de avestruzes não leva a nada. A crise deve ser assumida a partir da nossa fé pascal. Sociologismos, psicologismos são inúteis. Assumir a crise, pessoal e comunitariamente, é o único caminho fecundo, porque uma crise não surge sozinha, mas na comunidade. Devemos ter presente que, de uma crise, saímos melhor ou pior, mas nunca de forma igual.
“Nem todos querem aceitar essa realidade, mas é o único caminho, porque tomar ‘resoluções’ de mudança de vida sem ‘colocar a carne na grelha’ não leva a lado nenhum. As realidades pessoais, sociais e históricas são concretas e não devem ser assumidas com ideias; porque as ideias são discutidas (e é bom que o sejam), mas a realidade deve ser sempre assumida e discernida. É verdade que as situações históricas devem ser interpretadas com a hermenêutica da época em que aconteceram, mas isso não nos exime de as considerar e assumir como história do ‘pecado que nos assedia’. Portanto, na minha opinião, cada bispo da Igreja deve assumir e perguntar: o que devo fazer diante desta catástrofe?
“Fizemos o mea culpa perante tantos erros históricos no passado, embora não tenhamos participado pessoalmente dessas situações. É essa atitude que, hoje, nos é pedida. Pede-se uma reforma que, neste caso, não consiste em palavras, mas em atitudes que tenham a coragem de se colocarem em crise e de assumir a realidade seja qual for a consequência. Qualquer reforma começa por nós mesmos. A reforma da Igreja foi feita por homens e mulheres que não tiveram medo de entrar em crise e se deixar reformar pelo Senhor. É o único caminho, caso contrário, não seremos mais do que ‘ideólogos reformistas’ que não colocam a própria carne em jogo.
“As pesquisas e o poder das instituições não nos salvarão. O prestígio da nossa Igreja, que tende a esconder os seus pecados, não nos salvará; nem o poder do dinheiro nem a opinião dos media (muitas vezes dependemos muito deles). Salvar-nos-á abrir a porta para o Único que o pode fazer e confessar a nossa nudez: ‘Eu pequei’, ‘nós pecamos’ ... e chorar, e gaguejar quanto pudermos, ‘afasta-te de mim que Eu sou um pecador’. É esta a herança que o primeiro Papa deixou aos Papas e aos bispos da Igreja. Então, sentiremos aquela vergonha curadora que abre as portas para a compaixão e a ternura do Senhor que está sempre perto de nós. Como Igreja, devemos pedir a graça da vergonha e que o Senhor nos salve de sermos a desavergonhada prostituta de Ezequiel 16.
“É esta é a minha resposta, querido irmão. Continua como propões, mas enquanto arcebispo de Munique e Freising. Se te sentires tentado a pensar que, ao confirmar a tua missão e não aceitar a tua renúncia, este Bispo de Roma (teu irmão que te ama) não te entende, pensa no que Pedro sentiu diante do Senhor quando, à sua maneira, lhe apresentou a resignação: afasta-te de mim, sou um pecador, e ouve a resposta: apascenta as minhas ovelhas.
3. A terceira não é uma carta, é uma declaração: “A carta do Papa Francisco surpreendeu-me. Não esperava que ele reagisse tão rapidamente e também não esperava a sua decisão de me pedir para continuar como arcebispo de Munique e Freising.
"Fico comovido com os detalhes e o tom muito fraterno da sua carta e sinto como ele compreendeu e acolheu as minhas preocupações. Em obediência, aceito a sua decisão, como lhe havia prometido.”
O que há de mais comovente, em todo este cenário, é a evocação das lágrimas do primeiro Papa, as lágrimas de Pedro depois da sua traição, referidas em todos os Evangelhos [2].
Não são precisos comentários.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] MHG (investigação interdisciplinar sobre abuso sexual de menores por padres, diáconos e membros masculinos de ordens religiosas católicas na Alemanha, no Outono de 2018
[2] Mt 26, 69ss; Mc 14, 66-72; Lc 22, 55-62; Jo 18, 17.25-27 / Jo 21, 15-19