Crónica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias
Se algo se nos impôs de modo claro, com esta terrível pandemia, é que tudo e todos estamos interligados.
1. Constatámos que nos contagiamos uns aos outros, de tal modo que até foi e, por vezes, ainda é (por quanto tempo?), necessário desviarmo-nos uns dos outros, usar máscara, ficar confinados. Percebemos que precisamos de nos proteger uns aos outros: ou nos salvamos juntos ou podemos perder-nos todos. Aí está o exemplo das vacinas: basta um pouco de egoísmo esclarecido, para se perceber que elas têm de ser distribuídas por todos, pois enquanto houver alguém não vacinado no mundo a ameaça continua e tanto mais grave quanto irão surgindo variantes do vírus...
2. Cada uma de nós, cada um de nós é ela, é ele, único, única (cada uma, cada um diz "eu" como mais ninguém pode ou pôde alguma vez dizer). O enigma, o milagre espantoso do eu, ser autoconsciente, consciente de si, alguém como nunca houve outro ou outra!
Será que deste modo se está a afirmar o individualismo? De modo nenhum. Porque cada um de nós é um eu único, mas sempre na relação constituinte. Uma das características essenciais que nos distinguem dos outros animais é a neotenia (nascemos prematuros), que faz com que, vindos ao mundo por fazer, tenhamos de fazer-nos. O que andamos a fazer na vida? A fazer-nos, a partir de outros e uns com os outros. Quando olhamos para a neotenia, temos de concluir: ou a natureza foi madrasta para nós e não nos deu o que devia dar, como fez com os outros animais, ou esta é a condição de possibilidade de sermos o que somos: humanos, tendo de receber por cultura e produzindo cultura o que a natura nos não deu, sendo inventivos, criando o novo. Esta é, por um lado, a experiência da liberdade - somos dados a nós mesmos, com a responsabilidade de nos fazermos - e , por outro, a experiência radical da alteridade: sou eu com o outro, que também é um eu, mas um eu que não sou eu, um eu outro. E fazemo-nos uns aos outros e sempre com outros. Aliás, com esta pergunta tremenda: se eu tivesse encontrado na vida outras pessoas, se tivesse frequentado outras escolas, lido outros livros, feito outras viagens..., seria eu? Sim, seria eu mas de outro modo (idem sed aliter).
Temos uma herança genética (aquele óvulo que foi fecundado por aquele espermatozóide) e uma herança cultural. E, viajando para trás na história tanto genética como cultural, as relações são in-findas. Encontramos os pais, os avós, os bisavós, os trisavós, os tetravós..., por sua vez com relações e vínculos infindáveis..., e não é difícil concluir que poderíamos pura e simplesmente não existir. É um milagre existir precisamente "eu". Do ponto de vista cultural: estou a escrever e, se reflectir, constato que isso é possível porque há os que me ensinaram as primeiras letras, e a juntá-las, e a ler, e a língua portuguesa (que eu não inventei...), em relação e contacto com outras línguas (o que seria a língua portuguesa sem o latim?), encontro professores e mestres, que conheci, mas também os que não conhecei, mas foram eles que ensinaram estes meus mestres, e os que escreveram livros que eu li, que, por sua vez, não existiriam, se o seus autores não tivessem tido contacto com outros autores e outros livros... indefinidamente... O que seria eu, quem seria eu sem todos aqueles e aquelas que entraram na minha vida sem eles saberem nem mesmo eu... Ah, e eu não sei fazer automóveis nem computadores, nem telefones, nem cultivo nada do que me alimenta, que vem de tantas partes do mundo e resulta do trabalho concertado de tantos e de tantas por esse mundo além!...
Afinal, o que somos uns sem os outros, os conhecidos e aqueles e aquelas - constituem incomensuravelmente a maior parte, a quase totalidade - que não conhecemos? Somos e estamos interligados por vínculos indesmentíveis, sem os quais não seríamos, precisando de tirar dessa constatação as devidas consequências... Temos uma dívida universal...
3. E somos, vindos de uma história gigantesca: a evolução, desde o Big Bang, há 3.700 milhões de anos. E deu-se a expansão do Universo. E a Terra terá uns 5.000 milhões de anos. E não havia vida e apareceu a vida há uns 4.000 milhões de anos, e a vida foi-se expandindo e complexificando... Muito lentamente foram surgindo os hominídeos, veio o sapiens e depois, há uns 200-150 mil anos, o sapiens sapiens..., sendo necessário acrescentar: sapiens sapiens (sapiente sapiente) e ao mesmo tempo demens demens (demente demente)...
Aparecemos inseridos neste processo gigantesco, fazemos parte da Terra, a nossa casa comum, num vínculo indestrutível. Ela está ferida e grita. Como vamos tratá-la? É a casa de nós todos, da Humanidade inteira e ou cuidamos dela todos ou não há futuro...
Mas olhemos para a História propriamente dita da Humanidade, a que se inaugura com o sapiens sapiens. Que encontramos? O melhor e o pior, a mais heróica grandeza e a mais vil baixeza, santos e pecadores, progressos e regressões, heróis e cobardes, inventores e traidores, impérios contra impérios e rios de sangue..., migrações e encontros e desencontros entre povos, culturas e civilizações... E cada povo precisa de assumir a sua história, sem negá-la, porque a memória faz parte da identidade, e os erros não se resolvem derrubando estátuas nem autoflagelando-se, mas recolhendo os melhores ensinamentos..., para evitar mais erros
4. Aqui chegados, também perguntamos: Porque houve o Big Bang e não nada? E: Que futuro? Para onde queremos ir? Há um Sentido último? (Continua)
Anselmo Borges no Diário de Notícias
Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia