Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO
Hans Küng (1928-2021) realizou-se como o teólogo mais católico, o mais universal, pela amplidão e profundidade da sua obra.
1. Para a colecção Nova Consciência do Círculos de Leitores, escolhi um livro muito belo do grande historiador católico, Jean Delumeau, com um título sem originalidade, Aquilo em que acredito [1]. É obra de um avô, muito sábio e atento que, perante as perguntas das suas netas de cinco e sete anos, se esforçou por lhes deixar uma herança: as razões da esperança cristã de que vivia e de que tinha vivido, mas em bases que já não podiam ser as do passado e muito menos as adequadas à orientação das novas gerações. Continuo a recomendá-lo com fervor.
O conhecimento da problemática eclesial dos anos oitenta e noventa do século passado, que esse livro expõe, é absolutamente essencial. Por não se ter querido ouvir as vozes que reclamavam mudanças urgentes, acumularam-se atrasos e perderam-se forças para responder aos novos desafios. Parece-me que alguns sectores da Igreja continuam cegos e guias de cegos, com uma exibida pretensão de guardas da autêntica ortodoxia católica. Como o próprio Jesus diz, no Evangelho segundo S. João, os cegos que teimam em dizer que vêem não têm cura [2].
Foi também no Círculo de Leitores (Temas e Debates) que surgiu uma obra de Hans Küng com um título muito parecido: Aquilo em que creio [3].
Este teólogo confessa que escreve “para pessoas que se encontram num processo de procura. Para pessoas que não sabem que fazer com a fé tradicionalista de origem romana ou protestante, mas que também não estão contentes com a sua incredulidade ou as suas dúvidas de fé. Para pessoas que não anseiam por uma espiritualidade do bem-estar barata nem por uma ajuda espiritual a curto prazo”. “No entanto, também escrevo para todos aqueles que vivem a sua fé e, ademais, querem expandi-la. Para aqueles que em vez de se limitarem a crer, desejam saber e esperam, portanto, uma interpretação da fé que seja fundamentada filosófica, teológica, exegética e historicamente e tenha consequências práticas.” [4]
2. Dissemos na crónica do passado Domingo que, embora tivessem, em 1979, retirado a H. Küng a licença para ensinar numa Faculdade de Teologia Católica, realizou-se, de facto, como o teólogo mais católico, o mais universal, pela amplidão e profundidade da sua obra. Como ele próprio diz, “no decurso da minha longa vida, a minha concepção da fé foi-se tornando mais clara e ampla. Só disse, escrevi ou defendi aquilo em que creio. Durante muitas décadas, tive a possibilidade de estudar a Bíblia e a tradição, a filosofia e a teologia e isso preencheu a minha vida. Os resultados estão reflectidos nos meus livros”. Confessa que, no presente livro, não renega o que já tinha dito no seu livro Credo ou no Cristianismo: Essência e História [5].
A originalidade deste livro, em relação ao conjunto de toda a sua obra, não é, propriamente, o seu balanço nem a sua apresentação simplificada. É uma obra nova. Pressupõe, no entanto, o seu longo caminho, no alargamento progressivo da construção do seu itinerário. Seria levado a dizer que conseguiu elaborar o discurso narrativo de um verdadeiro método teológico. Qualquer elaboração teológica honesta deve ser consciente do mistério fundamental em que se movimenta, não para se resignar a ser uma teologia do silêncio ignorante, mas para se dar conta do excesso que Deus é.
Como dizia Tomás de Aquino, do conhecimento da fé, neste mundo, tanto mais sabemos, quanto mais compreendemos que ela excede tudo o que a nossa inteligência dela possa conceber [6]. Não é uma resignação, mas a consciência de que deve convocar todas as formas de conhecimento humano, sem as quais não pode pensar teologicamente porque fora do mundo não há salvação. Por isso, o mundo é o lugar teológico incontornável, como lembrou Edward Schillebeeckx, O.P.
Para H.Küng, “crer é o que move a razão, o coração e as mãos de uma pessoa, o que engloba o pensamento, a vontade, o sentimento e a acção”. “No entanto, tal como o amor cego, a fé cega é-me suspeita desde os meus tempos de estudante em Roma; a fé cega conduziu à perdição inúmeras pessoas e povos inteiros. Esforcei-me, e esforço-me, por cultivar uma fé que procura compreender, que não dispõe de muitas provas concludentes, mas sim de boas razões. Nesse sentido, a minha fé não é racionalista nem irracional, mas sim razoável.”
Insiste em que o livro Em que creio inclui muito mais do que uma confissão de fé em sentido tradicional. Denota as convicções e atitudes fundamentais que foram e são importantes, na sua vida, e espera que possam ajudar também outros a encontrarem o seu próprio caminho. Uma ajuda para orientação existencial e não apenas conselhos psicológico-pedagógicos para se sentirem bem e viverem a sua vida. Também não é uma pregação, proferida com altivez, nem um discurso puramente edificante. Confessa: não sou santo nem fanático. O livro é uma reflexão – apoiada na experiência pessoal e seriamente informada e informativa – sobre a questão fundamental: como viver com sentido.
3. Não recusa que lhe possam chamar meditações, mas esclarece: “Meditari significa literalmente avaliar, ponderar intelectualmente e, por extensão, pensar, cogitar, reflectir. Todavia, meditações não da perspectiva de um monge que fala da presença de Deus, mas da perspectiva de uma pessoa do mundo que procura Deus. Que isso não aconteça apenas com a cabeça, mas que o nosso coração se abra também a outras dimensões da realidade. A minha espiritualidade alimenta-se de experiências quotidianas como as que têm, ou podiam ter, muitas pessoas, mas clarificadas, claro, por meio de conhecimentos rigorosos e sistemáticos, como aqueles que se reúnem numa longa vida de teólogo, e afectadas por imponderáveis experiências do mundo, que não posso desligar de uma história de luta e sofrimento, como a que descrevi nos dois volumes das minhas memórias.” [7]
Ao terminar esta apresentação, importa um esclarecimento feito pelo próprio autor: não se trata de um inócuo passeio teológico por terreno plano com excursões a diferentes províncias da vida. É uma escalada espiritual lenta, paciente, ao ritmo de alpinista, atravessando alguns desfiladeiros, uns mais simples, outros mais perigosos. Tenta uma visão global do mundo, não como a de quem desce de helicóptero teológico, mas começando por baixo, no vale da vida diária, e pela primeira coisa de que uma pessoa, qualquer pessoa, precisa: confiança na vida, uma confiança básica.
É a partir dessa confiança que aborda e situa todas as questões que agitaram a sua vida de teólogo responsável pelo mundo, Casa Comum, da qual a maior parte das pessoas continua excluída.
Não se fiem no que eu disse desta obra. Experimentem-na.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] A edição portuguesa é de 1994, o original tinha saído nas Éditions Grasset, em 1985
[2] Jo 9, 39-41
[3] No original alemão, saiu em 2009, em português, em 2014
[4] Ib. Pág. 9
[5] Temas e Debates do Círculo de Leitores, 2012
[6] Summa Theologiae II-II, q.8, a.7
[7] Cf. Hans Küng, Aquilo em que creio, Temas e Debates do Círculo de Leitores, 2012, pp. 9-13