no PÚBLICO
Nas nossas igrejas, não basta colocar mulheres em algumas posições de responsabilidade.
1. O historiador Andrea Riccardi (nasceu em 1950), fundador da Comunidade de Santo Egídio, tem uma vasta obra sobre a vida da Igreja, no mundo moderno e contemporâneo, em parte já traduzida em português [1]. Conheci-o, em Lisboa, na Gulbenkian, quando veio participar num ciclo de “Conferências sobre a Democracia”, promovido pela Fundação Mário Soares. Tive a alegria de fazer a sua apresentação e ficámos amigos.
O Secretariado da Pastoral da Cultura, com o título A Sexta-feira Santa da Igreja Católica: Entre a noite e a aurora, chama a atenção para o mais recente ensaio deste historiador e militante católico, traduzindo uma entrevista do jornalista Riccardo Maccioni ao próprio Andrea Riccardi [2].
Parece-me importante trazer, para esta crónica, algumas referências dessa entrevista, procurando não a trair.
O autor fala do risco de a Igreja se concentrar no presente para defender as posições que ainda mantém. Em vez disso, é preciso suscitar e libertar energias construtivas. E surge a pergunta: Como podem nascer realidades renovadas a partir de um clero envelhecido e de estruturas que se mostram cada vez mais pesadas?
A. Riccardi reconhece que é uma grande questão, pois trata-se de olhar a realidade e decidir como orientar-se. Aponta, por exemplo, o discurso da presença feminina. Não basta colocar mulheres em algumas posições de responsabilidade. Nas nossas igrejas, a paróquia, em grande medida, é nelas que se apoia, mas ainda no interior de uma estrutura vertical masculina, mesmo quando esta se encontra fortemente enfraquecida. O clero diminuiu e envelheceu.
A questão da transformação da Igreja numa verdadeira comunidade de homens e mulheres está toda por explorar, bem como o tema da paróquia, ainda em larga medida ligada à ideia da territorialidade. E é preciso perguntar-se o que significa a chegada de milhões de estrangeiros, católicos e não. No fundo, trata-se da descoberta da nossa sociedade. Mas como?
Quando eu era jovem, observa A. Riccardi, estávamos numa sociedade parcialmente anticlerical e, em muitos aspectos, anticristã. Hoje, não podemos dizer que a posição das mulheres e dos homens do nosso tempo, mesmo que não acreditem e não participem, seja de oposição à Igreja.
Importa reabrir o diálogo com milhares de posições diferentes, que não são hostis à Igreja, mas decerto não se encontram no seu umbral. Vivemos num tempo estranho: de um lado, a Igreja está em declínio; do outro, há um ressurgimento do entusiasmo religioso, por exemplo, nos movimentos neoprotestantes. Encontramo-nos numa condição de Igreja irrelevante e de um pontificado, do admirável Papa Francisco, que, em parte, não é recebido.
Não se trata de organizar iniciativas que, por vezes, só servem para cobrir a irrelevância, mas de colocar perguntas. Só se nos interrogarmos é que nos libertamos do pessimismo e podemos entrever o caminho do futuro. No fim do livro fala de cinzentismo, mas também de uma aurora.
Se, como diz o autor, a Igreja arde (La Chiesa brucia), ao usar a imagem do incêndio de Notre-Dame de Paris, poderia dar a ideia que tudo se resume ao recurso a bombeiros e a peritos de reconstrução e restauro do passado. Mas não é o que o autor pretende. A tarefa que nos é pedida, hoje e amanhã, é o contínuo rejuvenescimento da Igreja.
2. Estamos na oitava da Páscoa. Nas celebrações em que participamos, encontramo-nos com as referências mais fundamentais do cristianismo, protagonizado por mulheres. Paradoxalmente, até parece que foi mentira. O papel que lhes é atribuído, nas celebrações, esquece a significação desses textos fundadores e fundamentais, agora e sempre que o Evangelho for proclamado.
O espantoso é que esses textos são proclamados sem provocarem nenhum sobressalto, nem nos homens nem nas mulheres. Passa-se por eles como se estivessem ultrapassados e não como nascimento inapagável da originalidade da fé cristã.
É o ancestral preconceito contra as mulheres que alimenta esse silêncio e essa indiferença. Os preconceitos nem sequer deixam ver que foi com as mulheres que Jesus se encontrou para lançar o futuro. Diz-se, por vezes, que Jesus de Nazaré não teve discípulas. Nominalmente, pode ser verdade. Realmente, teve. As mulheres que O seguiam e serviam na Galileia e O acompanharam, depois até à morte, em Jerusalém, foram verdadeiras discípulas. Só que, oficialmente, não são reconhecidas como tais [3].
É pela fé na Ressurreição que podemos dizer que o túmulo não foi o destino de Jesus. Tenha-se em conta que as narrativas da Ressurreição, nos quatro Evangelhos, com as suas semelhanças e diferenças, procuram todas mostrar que não há dois Cristos. É o crucificado que foi ressuscitado. Vê-se, nessas narrativas, uma dificuldade de linguagem para assegurar que é o mesmo, mas que se encontra numa situação completamente nova. Histórico é o testemunho das mulheres: testemunham que Ele está vivo, mas não está como no tempo em que conviveram com Ele.
O exemplo mais típico deste salto é dado no Evangelho segundo S. João pela boca de Maria Madalena, a apóstola dos apóstolos: “Maria estava junto ao túmulo, da parte de fora, a chorar. Sem parar de chorar, debruçou-se para dentro do túmulo, e contemplou dois anjos vestidos de branco, sentados onde tinha estado o corpo de Jesus, um à cabeceira e o outro aos pés. Perguntaram-lhe: Mulher, porque choras? E ela respondeu: Porque levaram o meu Senhor e não sei onde o puseram. Dito isto, voltou-se para trás e viu Jesus, de pé, mas não se dava conta que era Ele. E Jesus disse-lhe: Mulher, porque choras? Quem procuras? Ela, pensando que era o encarregado do horto, disse-lhe: Senhor, se foste tu que o tiraste, diz-me onde o puseste, que eu vou buscá-lo. Disse-lhe Jesus: Maria! Ela, aproximando-se, exclamou em hebraico: Rabbuni! – que quer dizer: Mestre! Jesus disse-lhe: Não me detenhas, pois ainda não subi para o Pai; mas vai ter com os meus irmãos e diz-lhes: Subo para o meu Pai, que é vosso Pai, para o meu Deus, que é vosso Deus. Maria Madalena foi e anunciou aos discípulos: Vi o Senhor! E contou o que Ele lhe tinha dito.” [4]
Jesus venceu os preconceitos. Na Igreja, ainda resistem.
3. Morreu Hans Küng, quando o espaço desta crónica já estava esgotado. Espero, no próximo Domingo, falar do teólogo que examinou tudo e soube guardar e difundir, apenas, o que era bom [5].
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Andrea Riccardi, Santo Egídio Roma e o Mundo, Nova Consciência, Círculo de Leitores, 1999; A força desarmada da paz, Paulinas, 2018; Periferias – Crise e Novidade para a Igreja, Lucerna, 2019; O Século do martírio, Quetzal, 2002
[2] La Chiesa brucia. Crisi e futuro del cristianesimo, [A Igreja está a arder. Crise e futuro do cristianismo], Ed. Laterza, Tempi Nuovi, 1. Abril. 2021
[3] Cf. A. Cunha de Oliveira, Jesus de Nazaré e as mulheres. A propósito de Maria Madalena, Instituto Açoriano de Cultura, 2011
[4] Jo 20, 11-18
[5] 1Ts 5, 21