Reflexão de Georgino Rocha
para o Domingo III da Páscoa
«Os discípulos cristãos, por direito e dever baptismais reforçados por outros sacramentos e graças, estão chamados a reconfigurar o rosto de Cristo desfigurado na autenticidade das suas vidas, na competência das suas profissões, na intervenção ética pública, na participação consciente na assembleia dominical/missa, nos serviços indispensáveis ao bom “funcionamento” da comunidade eclesial.»
Naqueles dias, o grupo dos amigos de Jesus estava reunido e comentava o desfecho da aventura em que apostaram. Conversava sobre as notícias que começavam a espalhar-se: rumores do túmulo vazio, desaparecimento do cadáver, vozes de que estaria vivo, aparições a mulheres, sobretudo a Madalena, a Pedro, aos peregrinos de Emaús. Reina a confusão e o desconcerto, apesar dos relatos positivos feitos por alguns dos presentes. O descalabro do Calvário deixou-lhes marcas profundas. A visão pessimista sobrepõe-se ao horizonte de esperança que começa a raiar. O estado anímico e mental permanece duro e sem possibilidades de entender a novidade que desponta. Lc 24, 35-48.
Lucas, tendo em conta a comunidade a que se destina o seu Evangelho, recorre a várias fontes e elabora um texto cheio de imagens e de símbolos, acompanhados por frases de clarificação. Deixa-nos assim uma bela e interpelante mensagem: A ressurreição não afecta apenas a Jesus, mas envolve-nos a todos, totalmente, embora possamos demorar algum tempo a tomar consciência desta verdade admirável que, um dia, há-de consumar-se, em nós, plenamente. O realismo da narração visa um objectivo pedagógico e doutrinal. Tem algum suporte histórico, mas é sobretudo doutrinal, indicativo da caminhada na fé de quem se abre à acção do Senhor ressuscitado.
O Ressuscitado faz-lhes, uma vez mais, a surpresa de se apresentar no meio deles, de os saudar e desejar a paz. Coloca-se no centro e observa as suas reacções: de espanto e medo, de perturbação e dúvida, de confusão com algum fantasma. São reacções que acompanham os humanos em todos os tempos.
Quem ignora as desfigurações de Jesus feitas ao longo da história? E quem, actualmente, não sente a tentação de “usar” a sua mensagem conforme as circunstâncias e conveniências? E quem não “treme” ao assumir o caminho que percorreu para nos salvar, apesar do desfecho feliz que teve, por benevolência de Deus Pai?
“Os relatos das aparições, afirma Castillo, querem destacar a identidade entre o Crucificado e o Ressuscitado. O que morreu na cruz e o que ressuscitou do sepulcro é o mesmo. Por isso o Ressuscitado mostra, como sinais de sua identidade suas mãos e seus pés. Pede que palpem. Insiste que um fantasma não tem carne nem ossos. E até se põe a comer diante deles. O importante aqui está nos sinais 7 de identidade que dá o Ressuscitado são todos sinais de identidade humana: mãos, pés, carne, ossos, comer…”.
Jesus encarrega-se de desfazer a conjectura e de lhes purificar a mente. Atesta a sua identidade. Recorre a sinais de reconhecimento: mãos e pés com cicatrizes das chagas, apelo à comprovação pelos sentidos, comida em sua companhia, releitura do passado à luz das Escrituras, revisão das atitudes de vida, nomeação para uma nova missão: serem suas testemunhas e, em seu nome, anunciar o Evangelho até aos confins da terra e dos tempos. “Sem Escrituras não há fé pascal. Não basta tocar o corpo do Ressuscitado”. Manicardi.
As urgências sentidas por Jesus mantêm-se actuais. Os discípulos cristãos, por direito e dever baptismais reforçados por outros sacramentos e graças, estão chamados a reconfigurar o rosto de Cristo desfigurado na autenticidade das suas vidas, na competência das suas profissões, na intervenção ética pública, na participação consciente na assembleia dominical/missa (onde o corpo de Cristo nos é dado como alimento), nos serviços indispensáveis ao bom “funcionamento” da comunidade eclesial.
O salmo da nossa missa lança uma interrogação pedagógica: “Muitos dizem: «Quem nos fará felizes?» e, em resposta, adianta: “Fazei brilhar sobre nós a luz da vossa face”. E o Papa Francisco refere em oração: “Peçamos ao Senhor que faça com todos nós o que fez com os discípulos que tinham medo da alegria: abra a nossa mente. ‘Então abriu-lhes a mente para que compreendessem as Escrituras’. Que o Senhor abra a nossa mente e nos faça entender que Ele é uma realidade viva, que tem um corpo, que está connosco e nos acompanha, que Ele venceu. Peçamos ao Senhor a graça de não ter medo da alegria”.
Pe. Georgino Rocha