no PÚBLICO
«Bergoglio não perde nenhuma oportunidade para relançar, com todas as pessoas de boa vontade, a fraternidade universal, em que não fica de fora nenhuma das grandes questões do nosso mundo. O Papa não é a Igreja. É um dinamizador fantástico, mas não pode nem quer fazer nada sozinho. Reeditou, na prática, o velho aforismo cristão: nada do que é humano me é estranho.»
1. Abraão estava redondamente enganado ao julgar que era de Deus a voz que lhe exigia a morte do seu único filho [1]. A dramaticidade criada por uma suposta ordem divina, exigindo a obediência louca e cega ao absurdo, é uma fantástica criação literária da mais pura desumanidade e, como tal, deveria ser lida e meditada para lá das aparências. Muitas leituras dessa narrativa dramática não se dão conta de que se trata de uma arte extraordinária para dizer que, da parte de Deus, nunca podem vir ordens de matar, embora abundem no Antigo Testamento.
Essa peça teológica, proposta hoje na Eucaristia, não é apenas para repudiar costumes ancestrais de loucura religiosa, que se alimentava de sacrifícios humanos, nem só para denunciar os actuais incitamentos à violência e à guerra, em nome de Alá, que fazem mais vítimas do que os repugnantes cultos da antiguidade. Também não deve servir para justificar as vergonhosas inquisições e guerras religiosas, no interior da história das igrejas cristãs.
Deve ajudar, pelo contrário, a descobrir e denunciar a sacralização de comportamentos sociais, económicos e políticos, que matam em série e às claras, em nome de concepções nada éticas, que banalizam a vida humana. O Papa Francisco foi e é atacado, em certos ambientes, por mostrar que há economias que matam, que geram e alimentam desigualdades assassinas.
Não nos enganemos com os equivocados elogios à fé e à obediência cega de Abraão, usados, por vezes, para confundir o “sentir com a Igreja” com a obediência cega a todas as medidas das hierarquias eclesiásticas!
Estas considerações exigem a leitura de todo o capítulo 22 do Génesis. O fragmento proclamado na Missa de hoje é insuficiente para ver que não basta ler a Bíblia a correr. Exige demorada e meditada interpretação que será sempre falível, mas indispensável.
A Quaresma pode ser um tempo para nos purificarmos de todas as nossas idolatrias, tornando-nos livres para o mundo do Deus de Jesus Cristo. É a fé, a esperança e o amor no advento desse novo mundo que não nos deixa desesperar. Como diz Jorge de Sena, “Não desesperarei da Humanidade/ Por mais que o mundo, o acaso, a Providência, tudo/ à minha volta afogue em lágrimas e bombas/ os sonhos de liberdade e de justiça/ …esperarei ainda e sempre” [2].
Na longa Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya, faz a sua confissão: “Confesso que/ muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos/ de opressão e crueldade, hesito por momentos/ e uma amargura me submerge inconsolável./ Serão ou não em vão? Mas mesmo que o não sejam,/ quem ressuscita esses milhões, quem restitui/ não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado? (…) Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém/ vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la./ É isto que mais importa – essa alegria.”
2. A 2.ª leitura da Missa é tirada da famosa Carta aos Romanos. Paulo está inebriado do Espírito de Cristo, num mundo em dores de parto, mas nem por isso desespera: “Se Deus está por nós, quem será contra nós?… Quem irá acusar os eleitos de Deus? Deus é quem nos justifica! Quem irá condená-los? Jesus Cristo, aquele que morreu, mais, que ressuscitou, que está à direita de Deus é quem intercede por nós… Estou convencido de que nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem as potestades, nem a altura, nem o abismo, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor que Deus nos tem em Cristo Jesus, Senhor nosso.”
Paulo não se ocupou com o itinerário terrestre de Jesus, nas suas tentações, desilusões e incompreensão dos seus irmãos e dos próprios discípulos. O glorioso resultado final, a ressurreição, era a única coisa que lhe interessava.
A narrativa de S. Marcos pertence ao tempo da igreja cheia de problemas. É preciso mostrar que também a vida de Jesus foi uma vida verdadeiramente humana, agitada por problemas muito semelhantes aos que as comunidades cristãs sofrem. É normal que, às vezes, peçam sinais luminosos para caminhar. Também Jesus precisou de mostrar que havia uma luz ao fundo do túnel de todas as incompreensões e depressões. Também precisou de mostrar, ao contrário do que se dizia, que era Ele o centro de todas as esperanças de que falaram as mais prestigiosas figuras do Antigo Testamento. Ele não era um traidor ao que havia de melhor nessas Escrituras. Era algo de verdadeiramente novo. Nesse momento, as evocações da divindade eram a veste da sua humanidade. É bom ler o próprio texto:
“Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João e levou-os, só a eles, a um monte elevado. E transfigurou-se diante deles. As suas vestes tornaram-se resplandecentes, de tal brancura que lavadeira alguma da terra as poderia branquear assim. Apareceu-lhes Elias, juntamente com Moisés, e ambos falavam com Ele. Tomando a palavra, Pedro disse a Jesus: Mestre, como é bom estarmos aqui; façamos três tendas: uma para ti, uma para Moisés e uma para Elias. Não sabia que dizer, pois estavam assombrados. Formou-se, então, uma nuvem que os cobriu com a sua sombra, e da nuvem fez-se ouvir uma voz: Este é o meu Filho muito amado. Escutai-o. De repente, olhando em redor, já não viram ninguém, a não ser só Jesus, com eles. Ao descerem do monte, ordenou-lhes que a ninguém contassem o que tinham visto, senão depois de o Filho do Homem ter ressuscitado dos mortos. Eles guardaram a recomendação, discutindo uns com os outros o que seria ressuscitar de entre os mortos.”
Esta última observação mostra que nem todos os dias são Domingo.
3. É evidente que precisamos de acontecimentos que transfigurem os nossos momentos de desânimo em incitamentos a voltar a caminhar.
Em vez de nos queixarmos do que não há, importa descobrir e conhecer o que já está a caminho, no plano da inteligência da fé, no plano da ética pessoal, familiar, social e ecológica, no plano da criatividade em todas as formas de arte. Por outro, importa desenvolver condições e clima, nas comunidades cristãs, que estimulem a criatividade.
No Vaticano II, foi elaborado um documento sobre a Igreja no mundo contemporâneo, Gaudium et Spes. É um dos textos fundamentais e estruturantes desse Concílio. Não podemos esquecer que já passaram 60 anos. 60 anos de mudanças vertiginosas em muitos sectores da vida humana, a nível local e global.
Temos de dar graças a Deus porque o tempo de negação dos caminhos do Vaticano II recebeu um duro golpe com este pontificado. Bergoglio não perde nenhuma oportunidade para relançar, com todas as pessoas de boa vontade, a fraternidade universal, em que não fica de fora nenhuma das grandes questões do nosso mundo. O Papa não é a Igreja. É um dinamizador fantástico, mas não pode nem quer fazer nada sozinho. Reeditou, na prática, o velho aforismo cristão: nada do que é humano me é estranho.
Precisamos de visitar as novas Ágoras que se abriram em Portugal.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Gn 22
[2] Jorge de Sena, A morte, o espaço, a eternidade, Assis, 1/4/961, sábado de Aleluia