domingo, 24 de janeiro de 2021

Vivemos no tempo, não na eternidade

Crónica de Bento Domingues 
no PÚBLICO


«É na Igreja, a comunidade dos baptizados, que tanto homens como mulheres podem ser convocados para determinados serviços e encargos. Não são nem as mulheres nem os homens que podem atribuir-se, a si próprios, essas funções como se fosse um direito.»

1. Algumas pessoas telefonaram-me para dizer que o 3.º ponto da minha crónica do Domingo passado não respeitava nem o Papa Francisco nem João Paulo II. Chamava bilhetinho desnecessário e, por isso, irónico à Carta Apostólica, Spiritus Domini, do Papa Francisco. Insinuava que Bergoglio recorria a esse estilo por causa da Carta Apostólica de João Paulo II, Ordinatio Sacerdotalis (22.05.1994), da qual deixei apenas a conclusão: “A ordenação sacerdotal, mediante a qual se transmite a função confiada por Cristo aos apóstolos, de ensinar, santificar e reger os fiéis, foi reservada sempre, na Igreja Católica, exclusivamente aos homens.”
Poderia ter sido útil avisar que esta referência se inscreve nas declarações de Paulo VI, de João Paulo II e nos comentários dos Prefeitos da Congregação para a Doutrina da Fé, J. Ratzinger e L. Ladaria. No entanto, o sentido eclesial das minhas intervenções exige o exercício responsável da liberdade, sem o qual o debate teológico não tem qualquer sentido.
Exprimi uma preocupação que é também um desafio. As mulheres lutam, na sua diferença, por um estatuto igual ao dos homens na vida familiar, profissional, cívica, cultural e política. Muitas queixam-se de que, no interior da Igreja católica, a sua diferença é afirmada pela exclusão. Por serem mulheres não são chamadas para exercer os ministérios ordenados que, na organização actual, resultam do sacramento da Ordem e do qual dependem os diáconos, os presbíteros e os bispos.
É na Igreja, a comunidade dos baptizados, que tanto homens como mulheres podem ser convocados para determinados serviços e encargos. Não são nem as mulheres nem os homens que podem atribuir-se, a si próprios, essas funções como se fosse um direito. É apenas o acolhimento da graça de servir.
Pela decisão de João Paulo II, as mulheres nunca foram nem serão chamadas ao presbiterado e, com maior razão, ao episcopado. Esta clareza, do ponto de vista da interpretação do Novo Testamento, não é tão clara como parece. Não é apenas em relação a outras Igrejas cristãs, também não é uma questão tranquila no seio da Igreja católica. Há quem julgue que Roma deu por terminado, demasiado depressa, um debate (1976/1994) que está muito longe de ter esgotado os caminhos de um desejável consenso. O próprio conceito de apostolicidade continua em discussão, no Movimento Ecuménico [1].
Kevin Madigan e Carolyn Osiek publicaram uma obra, bastante abrangente, sobre as mulheres ordenadas na Igreja primitiva. É uma história documentada e que recomendo vivamente.
Nessa história, trabalhada com rigor, aparece uma passagem curiosa que nos diz directamente respeito. Bento VIII (1012-1024) escreveu uma carta ao bispo do Porto, em 1017. Nessa carta, confirma algumas concessões e certos privilégios a esse bispo, entre os quais se encontram os seguintes: “Do mesmo modo, vos concedemos e te confirmamos e aos teus sucessores para a eternidade toda a ordenação episcopal (ordinationem episcopalem), não só de presbíteros, mas também de diáconos ou diaconisas (diaconissis) ou subdiáconos.”
Os editores da obra referida anotaram: apesar de todos os esforços anteriores dos Concílios do Ocidente de eliminar as diaconisas, é surpreendente encontrar um papa, nos inícios do século XI, que não só reconhece o ofício das diaconisas, mas que admite que o rito da iniciação é uma ordenação [2].
O livro Mulheres diáconos – Passado, presente, futuro observa que João Paulo II e Bento XVI não fizeram nada para restaurar o diaconado ordenado das mulheres. Só em 2016 é que o Papa Francisco começou a agir, convocando uma Comissão para estudar a questão em seu nome [3].
As definições dogmáticas, as decisões dos concílios, as orientações da pastoral, são sempre pronunciamentos marcados pelo tempo e pelos desafios que tiveram e têm de enfrentar. Não podem pretender substituir o Espírito Santo Criador, que sopra quando quer, como quer e onde quer, sem pedir licença a ninguém e sem qualquer arbitrariedade

2. Não devemos ficar, apenas, com a problemática do acesso das mulheres ao diaconado, embora se tenha realçado: o diaconado das mulheres tem de ser inferior ao dos homens. A grande dificuldade, no entanto, é acerca da ordenação presbiteral das mulheres. Sobre esta pesa uma sentença imobilizadora.
A tentação de respostas definitivas, a questões sujeitas ao devir imprevisível dos acontecimentos, é de quem se situa fora do tempo ou usurpa a visão de um Deus desencarnado que não é, propriamente, o Deus de Jesus Cristo, o Emmanuel, companheiro da viagem dos seus irmãos e irmãs.
As definições dogmáticas, as decisões dos concílios, as orientações da pastoral, são sempre pronunciamentos marcados pelo tempo e pelos desafios que tiveram e têm de enfrentar. Pretendem ser orientações para que os cristãos não se percam na viagem. Não podem pretender substituir o Espírito Santo Criador, que sopra quando quer, como quer e onde quer, sem pedir licença a ninguém e sem qualquer arbitrariedade.

3. António Marujo conta que, num seminário internacional promovido pela Faculdade de Teologia da Universidade Católica, sobre a figura do Jesus histórico, o biblista Joaquim Carreira das Neves afirmou que as mulheres eram discípulas de Jesus “em grau de igualdade com outros homens e mulheres que acreditavam em Jesus como profeta messiânico”.
A nossa actualidade não se pode desligar do estudo crítico da vida das primeiras comunidades cristãs. Os exegetas concordam cada vez mais em dizer que as mulheres acompanharam os dois ou três anos de vida pública de Jesus. No mesmo seminário, Frédéric Manns, investigador e ex-director do Studium Biblicum Franciscanum, de Jerusalém, afirmou uma evidência: “havia mulheres no grupo de permanentes que acompanhava Jesus. Esta era, porém, uma atitude tanto mais ousada quanto, no judaísmo da época, as mulheres eram marginalizadas ao ponto de não servirem como testemunhas.”
Nesse mesmo seminário, Carreira das Neves viu nos textos dos Prefeitos da Congregação para a Doutrina da Fé declarações de tipo “pastoral” e não dogmático que, por isso, deixam espaço para prosseguir a discussão [4].
Giancarlo Pani, num interessante artigo traduzido para a Unisinos, recorda que é um facto histórico inegável o da exclusão das mulheres do sacerdócio por serem mulheres. Mas observa que, já em 1948, muito antes das contestações dos anos 1970, o P. Congar – a maior figura da eclesiologia católica – recordava que, “pelo facto de que a Igreja não tenha feito uma coisa (...), não é sempre prudente concluir que a Igreja não a possa fazer e que nunca a fará” [5].
Observação luminosa que pode ajudar em muitas questões sobre as quais continua a imperar a sentença paralisante: isso nunca foi e nunca será.
Para dizer isto, alguns Papas empenharam a sua autoridade. Quando se trata de alterar algo que se impõe como uma urgência, dizem que não podem ir contra a tradição.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] Cf. Michael Theobald, Apostolicidad en la Iglesia. Un conflict desde una perspectiva neotestamentária, in Selecciones de Teología, n.º 235, 2020, 179-186; Wolfgang Beinert, Apostólico. Anatomía de un concepto, in Selecciones de Teología, n.º 180, 2006, 269-283
[2] Cf. Kevin Madigan y Carolyn Osiek (eds.), Mujeres ordenadas en la Iglesia primitiva. Una historia documentada, Madrid, Aletheia/evd, 2006, p. 219
[3] Gary Macy, William Ditewig e Phyllis Zagano, Ed. Paulinas, 2019
[4] Cf. PÚBLICO, 14.04. 2006
[5] As “mulheres diácono” na era apostólica e subapostólica, Revista IHU online, edição 546

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