Crónica de Frei Bento Domingues
no PÚBLICO
Neste doloroso tempo de pandemia,
as bem-aventuranças estão a ser vividas
por crentes e não crentes que ajudam
a resistir à sua cruel devastação.
1. Segundo o grande historiador das religiões, Mircea Eliade, a crença na vida para além da morte está demonstrada desde os tempos mais remotos. As primeiras sepulturas conhecidas confirmam a antiguidade dessa crença. Os enterros direccionados para Oriente – e os usos dos seus rituais – indicavam a intenção de conectar a sorte da alma com o curso do sol, ou seja, a esperança num “renascimento”, a existência num outro mundo com marcas e utensílios das ocupações da vida anterior. Daí a sua conclusão: o homo faber era também homo ludens, sapiens e religiosus [1].
A festa de Todos os Santos e a celebração de Todos os Fiéis Defuntos podem ser estudadas como fenómenos internos do cristianismo, mas também em ligação com outra história subjacente: a história da cristianização de festas e mitos pagãos.
O desejo de viver e de renovar a vida parece fazer parte de qualquer ser humano. Para uns, a morte apresenta-se como o fim dessa utopia. Para outros, é inconcebível que esse desejo natural possa ser frustrado e acreditam, de modos muito diferentes, que a morte não é a última palavra.
Diz-se que a biomedicina actual promete a imortalidade do corpo neste mundo [2]. Veremos, como dizia o ceguinho.
2. A posição do ser humano, na totalidade do cosmos, continua muito periférica, embora carregada de perguntas. Que são, afinal, os meus anos de vida em comparação com a idade da humanidade? Que são os 100.000 anos da humanidade em comparação os 13 milhões de anos do cosmos? E para onde vai a grande história do cosmos? Para onde vai a humanidade e para onde vou eu próprio?
No nosso tempo, essa problemática assumiu dimensões que nos afectam, na relação e no comportamento com o nosso planeta, que não podemos ignorar. Apesar de todos as incoerências – devido sobretudo aos falsos interesses das grandes potências –, vai crescendo a sensibilidade a respeito do ambiente, do cuidado com a natureza e com tudo o que de negativo está acontecer à Casa Comum.
Quando se pergunta que tipo de mundo se procura deixar às futuras gerações, a resposta não pode ser fragmentária. O Papa Francisco, com a Encíclica Laudato si', tentou abrir o caminho para uma ecologia integral, ajudando-nos a tomar consciência de que, sem nos reconhecermos como irmãos – Fratelli tutti –, deitamos a perder as melhores conquistas da história humana. Evitar a pergunta sobre o sentido da nossa passagem pela terra é descuidar a questão essencial. Não somos seus donos, estamos de passagem e devemos deixá-la melhor do que a encontramos.
Temos, por isso, o direito e o dever de nos apaixonarmos pelas coisas da Terra, como dizia P. Teilhard de Chardin. Na poética bíblica, são coisas do jardim de Deus para o trabalho e alegria de todos os seus filhos e filhas: um ensaio para entrar nos misteriosos novos céus e nova terra, onde serão enxugadas todas as lágrimas [3].
3. O Credo cristão apresenta-se como um tecido das razões da grande esperança, alma da religião. Termina assim: e espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há-de vir. Ámen [4].
Não diz como é que isso possa acontecer e duvido das explicações teológicas que encontrei. Inscrevo-me na prática da antiga teologia negativa que exige o salto da negação para obter afirmações que superem a própria analogia.
Para mim, esta confissão de esperança é uma admirável e rotunda recusa do niilismo. Para quem acredita que Jesus Cristo é Deus-connosco, a última palavra sobre a aventura humana não pode ser a evidência empírica da morte. Deus pode querer os seus filhos e filhas, para sempre, irmãos e irmãs de Cristo crucificado.
Um processo de canonização é muito caro, muito selectivo, muito influenciado pela geografia, em alguns casos muito demorado e noutros parece demasiado apressado. De qualquer modo, não corresponde à fantástica visão do Apocalipse – livro admirável da resistência cristã – proclamada, hoje, na celebração de Todos os Santos: “uma multidão imensa que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas” fazem parte do verdadeiro corpo místico de Cristo.
Nesta celebração, além do texto referido do Apocalipse, a 1.ª Carta de S. João é de uma ousadia extrema. Insiste que já somos filhos de Deus, mas ainda não vemos Aquele em quem pusemos a nossa esperança. Quando se manifestar, então, veremos não só quem Ele é, mas descobriremos também que somos mesmo semelhantes a Deus [5].
As famosas bem-aventuranças são o tema do Evangelho de S. Mateus, seleccionado para a celebração de Todos os Santos. É paradoxal: felizes são os infelizes. Felizes os pobres, deles é o Reino dos Céus; felizes os humildes, possuirão a terra; felizes os que choram, serão consolados; felizes os que têm fome e sede de justiça, serão saciados; felizes os misericordiosos, alcançarão misericórdia; felizes os puros de coração, verão a Deus; felizes os que promovem a paz, serão chamados filhos de Deus; felizes os que sofrem perseguição por amor da justiça, deles é o Reino dos Céus. E conclui, dirigindo-se aos discípulos: “bem-aventurados sereis, quando, por minha causa, vos insultarem, vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós. Alegrai-vos e exultai, porque é grande nos Céus a vossa recompensa” [6].
Não se trata de uma reportagem, em directo, de um sermão ou de alguém que tinha uma memória prodigiosa para reter e conservar palavras que só foram escritas cerca de 50 anos depois. Os Evangelhos são interpretações contextuais, não traições, para transmitir o espírito de Cristo, segundo as necessidades das comunidades cristãs, em tempos diferentes.
Neste sermão, são alterados os critérios mundanos da felicidade. Foi-nos revelado que Deus vê o mundo a partir da periferia, dos que são deixados ao abandono. Só nos parecemos com Deus, quando é também esse o nosso olhar e o nosso cuidado. Mas é, também, um corte com os desejos que Jesus notava nos seus discípulos: eram pobres, mas com o sonho de se tornarem ricos, poderosos, dominadores. As bem-aventuranças são uma radical alteração de valores, acompanhadas pelas obras de misericórdia, pelas quais somos julgados.
A vida é um exercício de esperança, como diz Enzo Bianchi, não de enganos. Quando em certa pregação e espiritualidade se insistia: sofre, sofre agora porque estás a ganhar um lugar no céu, estava a perverter o espírito cristão da esperança.
Neste doloroso tempo de pandemia, as bem-aventuranças estão a ser vividas por crentes e não crentes que ajudam a resistir à sua cruel devastação.
Sem esperança é impossível viver.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Cf. Hans Küng, Vida Eterna?, Cristiandad, Madrid, 1983, pp.94-96
[2] Cf. Daniel Serrão, Questões de Bioética, in Deus no século XXI e o futuro do Cristianismo (Coord. Anselmo Borges), Campo das Letras, 2007, pp. 333-345.
[3] Ap 21, 1
[4] Credo Niceno-Constantinopolitano
[5] 1 Jo 3, 1-3
[6] Mt 5, 1-12