domingo, 1 de novembro de 2020

A vida é um exercício de esperança

Crónica de Frei Bento Domingues 
no PÚBLICO



Neste doloroso tempo de pandemia, 
as bem-aventuranças estão a ser vividas 
por crentes e não crentes que ajudam 
a resistir à sua cruel devastação.

1. Segundo o grande historiador das religiões, Mircea Eliade, a crença na vida para além da morte está demonstrada desde os tempos mais remotos. As primeiras sepulturas conhecidas confirmam a antiguidade dessa crença. Os enterros direccionados para Oriente – e os usos dos seus rituais – indicavam a intenção de conectar a sorte da alma com o curso do sol, ou seja, a esperança num “renascimento”, a existência num outro mundo com marcas e utensílios das ocupações da vida anterior. Daí a sua conclusão: o homo faber era também homo ludens, sapiens e religiosus [1].
A festa de Todos os Santos e a celebração de Todos os Fiéis Defuntos podem ser estudadas como fenómenos internos do cristianismo, mas também em ligação com outra história subjacente: a história da cristianização de festas e mitos pagãos.
O desejo de viver e de renovar a vida parece fazer parte de qualquer ser humano. Para uns, a morte apresenta-se como o fim dessa utopia. Para outros, é inconcebível que esse desejo natural possa ser frustrado e acreditam, de modos muito diferentes, que a morte não é a última palavra.
Diz-se que a biomedicina actual promete a imortalidade do corpo neste mundo [2]. Veremos, como dizia o ceguinho.

2. A posição do ser humano, na totalidade do cosmos, continua muito periférica, embora carregada de perguntas. Que são, afinal, os meus anos de vida em comparação com a idade da humanidade? Que são os 100.000 anos da humanidade em comparação os 13 milhões de anos do cosmos? E para onde vai a grande história do cosmos? Para onde vai a humanidade e para onde vou eu próprio?
No nosso tempo, essa problemática assumiu dimensões que nos afectam, na relação e no comportamento com o nosso planeta, que não podemos ignorar. Apesar de todos as incoerências – devido sobretudo aos falsos interesses das grandes potências –, vai crescendo a sensibilidade a respeito do ambiente, do cuidado com a natureza e com tudo o que de negativo está acontecer à Casa Comum.
Quando se pergunta que tipo de mundo se procura deixar às futuras gerações, a resposta não pode ser fragmentária. O Papa Francisco, com a Encíclica Laudato si', tentou abrir o caminho para uma ecologia integral, ajudando-nos a tomar consciência de que, sem nos reconhecermos como irmãos – Fratelli tutti –, deitamos a perder as melhores conquistas da história humana. Evitar a pergunta sobre o sentido da nossa passagem pela terra é descuidar a questão essencial. Não somos seus donos, estamos de passagem e devemos deixá-la melhor do que a encontramos.
Temos, por isso, o direito e o dever de nos apaixonarmos pelas coisas da Terra, como dizia P. Teilhard de Chardin. Na poética bíblica, são coisas do jardim de Deus para o trabalho e alegria de todos os seus filhos e filhas: um ensaio para entrar nos misteriosos novos céus e nova terra, onde serão enxugadas todas as lágrimas [3]. 

3. O Credo cristão apresenta-se como um tecido das razões da grande esperança, alma da religião. Termina assim: e espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há-de vir. Ámen [4].
Não diz como é que isso possa acontecer e duvido das explicações teológicas que encontrei. Inscrevo-me na prática da antiga teologia negativa que exige o salto da negação para obter afirmações que superem a própria analogia.
Para mim, esta confissão de esperança é uma admirável e rotunda recusa do niilismo. Para quem acredita que Jesus Cristo é Deus-connosco, a última palavra sobre a aventura humana não pode ser a evidência empírica da morte. Deus pode querer os seus filhos e filhas, para sempre, irmãos e irmãs de Cristo crucificado. 
Um processo de canonização é muito caro, muito selectivo, muito influenciado pela geografia, em alguns casos muito demorado e noutros parece demasiado apressado. De qualquer modo, não corresponde à fantástica visão do Apocalipse – livro admirável da resistência cristã – proclamada, hoje, na celebração de Todos os Santos: “uma multidão imensa que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas” fazem parte do verdadeiro corpo místico de Cristo.
Nesta celebração, além do texto referido do Apocalipse, a 1.ª Carta de S. João é de uma ousadia extrema. Insiste que já somos filhos de Deus, mas ainda não vemos Aquele em quem pusemos a nossa esperança. Quando se manifestar, então, veremos não só quem Ele é, mas descobriremos também que somos mesmo semelhantes a Deus [5].
As famosas bem-aventuranças são o tema do Evangelho de S. Mateus, seleccionado para a celebração de Todos os Santos. É paradoxal: felizes são os infelizes. Felizes os pobres, deles é o Reino dos Céus; felizes os humildes, possuirão a terra; felizes os que choram, serão consolados; felizes os que têm fome e sede de justiça, serão saciados; felizes os misericordiosos, alcançarão misericórdia; felizes os puros de coração, verão a Deus; felizes os que promovem a paz, serão chamados filhos de Deus; felizes os que sofrem perseguição por amor da justiça, deles é o Reino dos Céus. E conclui, dirigindo-se aos discípulos: “bem-aventurados sereis, quando, por minha causa, vos insultarem, vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós. Alegrai-vos e exultai, porque é grande nos Céus a vossa recompensa” [6].
Não se trata de uma reportagem, em directo, de um sermão ou de alguém que tinha uma memória prodigiosa para reter e conservar palavras que só foram escritas cerca de 50 anos depois. Os Evangelhos são interpretações contextuais, não traições, para transmitir o espírito de Cristo, segundo as necessidades das comunidades cristãs, em tempos diferentes.
Neste sermão, são alterados os critérios mundanos da felicidade. Foi-nos revelado que Deus vê o mundo a partir da periferia, dos que são deixados ao abandono. Só nos parecemos com Deus, quando é também esse o nosso olhar e o nosso cuidado. Mas é, também, um corte com os desejos que Jesus notava nos seus discípulos: eram pobres, mas com o sonho de se tornarem ricos, poderosos, dominadores. As bem-aventuranças são uma radical alteração de valores, acompanhadas pelas obras de misericórdia, pelas quais somos julgados.
A vida é um exercício de esperança, como diz Enzo Bianchi, não de enganos. Quando em certa pregação e espiritualidade se insistia: sofre, sofre agora porque estás a ganhar um lugar no céu, estava a perverter o espírito cristão da esperança.
Neste doloroso tempo de pandemia, as bem-aventuranças estão a ser vividas por crentes e não crentes que ajudam a resistir à sua cruel devastação.
Sem esperança é impossível viver.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO


[1] Cf. Hans Küng, Vida Eterna?, Cristiandad, Madrid, 1983, pp.94-96
[2] Cf. Daniel Serrão, Questões de Bioética, in Deus no século XXI e o futuro do Cristianismo (Coord. Anselmo Borges), Campo das Letras, 2007, pp. 333-345.
[3] Ap 21, 1
[4] Credo Niceno-Constantinopolitano
[5] 1 Jo 3, 1-3
[6] Mt 5, 1-12

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue