Crónica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias
Bom Samaritano, 1849, Eugène Delacroix
Há sombras negras que pairam no horizonte,
obrigando a pensar e a exigir que se mude de rumo
1. “FRATELLI TUTTI” (irmãos todos) é o título da nova encíclica do Papa Francisco, abrindo horizontes novos para a Humanidade mergulhada numa profundíssima crise global. Cita Francisco de Assis escrevendo aos seus irmãos e irmãs para lhes propor uma forma de vida segundo o Evangelho, convidando-os a um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço: feliz quem ama o outro, “o seu irmão que está longe ou que está perto”. Inspira-se, pois, em Francisco de Assis: não é acidental que, publicada com a data de 4 de Outubro, a tenha ido assinar na véspera sobre o seu túmulo, em Assis. Não é a única fonte de inspiração: estão também presentes outros líderes espirituais e políticos, como Charles de Foucauld, Martin Luther King, Desmond Tutu, Mahatma Gandhi...
O subtítulo da carta: “Sobre a fraternidade e a amizade social”, explicitado nestes termos: “Entrego esta encíclica social como humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas actuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras.” Embora partindo das suas convicções cristãs, quer dirigir-se a todas as pessoas de boa vontade, num diálogo sincero e plural, para a realização de um sonho comum de dignificação de todos. “Sonhemos como uma única Humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos desta mesma Terra que nos alberga a todos, cada qual com a riqueza da sua fé ou das suas convicções, cada qual com a própria voz, mas todos irmãos.”
2. Começou a ser escrita antes da pandemia, mas esta parece ter agravado ainda mais a situação e há sombras negras que pairam no horizonte, obrigando a pensar e a exigir que se mude de rumo.
Exemplos de sombras e “tendências que dificultam o desenvolvimento da fraternidade universal”.
Não há um sonho comum mobilizador, “um projecto para todos”, o que se impõe é uma “cultura do descarte mundial”. A própria Europa avançava para variadas formas de integração, havia um anseio semelhante na América Latina e tentativas de pacificação e reaproximações noutras regiões. Mas “a História dá sinais de regressão”, reacendendo-se conflitos que se considerava superados, ressurgem nacionalismos “ressentidos e agressivos”. A ditadura do mercado quer impor um modelo cultural único e num mundo cada vez mais massificado perdemos a dimensão comunitária e encontramo-nos cada vez mais sós. O avanço da globalização favorece normalmente a identidade dos mais fortes e ameaça as identidades das regiões mais frágeis e pobres e, deste modo, “a política torna-se cada vez mais frágil perante os poderes económicos transnacionais.” Acentua-se a perda da memória, das raízes e do sentido da história, ficando em pé “apenas a necessidade de consumir sem limites” e um individualismo vazio. Aí estão “novas formas de colonização cultural”, sem pensamento crítico: “Que significado têm hoje palavras como democracia, liberdade, justiça, unidade? Foram manipuladas para utilizá-las como instrumento de domínio.” As redes sociais tomaram conta de muitos e a verdade esvai-se em fake news e no controlo das mentes, sem capacidade para pensar, tanto mais quanto se nega a outros “a capacidade de existir e pensar”, recorrendo-se “à estratégia de ridicularizá-los, insinuar suspeitas sobre eles e reprimi-los”. A sociedade acaba “reduzida à prepotência do mais forte” e “um projecto com grandes objectivos para o desenvolvimento de toda a Humanidade soa a um delírio.” Precisamos de nos construirmos como um “nós” que habita a casa comum de todos, mas isso “não interessa aos poderes económicos que necessitam de um ganho rápido”. Pairam no horizonte ameaças de novas guerras, e a Natureza dá sinais de alarme. Aumenta a riqueza, mas nascem novas pobrezas e morre-se de fome aos milhões. “Os direitos humanos não são iguais para todos”. O clamor de migrantes e refugiados é ensurdecedor. Cresce a raiva das vítimas de racismo. As mulheres continuam a ver-se sem os seus direitos garantidos, e as condições de escravatura não acabaram. E continuam as guerras, os atentados, as perseguições, os muros..., e a solidão, os medos, as inseguranças. E “a terceira guerra mundial aos pedaços” é visível.
Será que aprendemos alguma coisa com esta crise dramática? É que não se pode ignorar que “o princípio ‘salve-se quem puder’ traduzir-se-á rapidamente no lema ‘todos contra todos’, e isso será pior que uma pandemia.”
3. Frente a este horizonte sombrio — excessivamente pessimista, dirão alguns —, a encíclica é um convite à esperança activa, com o samaritanismo. O exemplo é o bom Samaritano. Ele era um estrangeiro, mal visto pela ortodoxia, e também tinha os seus afazeres. Mas, à beira da estrada, jazia um desgraçado semi-morto, e ele parou, ajudou-o no que pôde, levou-o para a estalagem, pagou e que pagaria todas as despesas... Foi ele e não os dois religiosos (o sacerdote e o levita) o próximo daquele abandonado. “Vai e faz o mesmo.”
Para os cristãos, todos os seres humanos são irmãos e irmãs, porque há um Pai comum, Deus. Mas a fraternidade podemos ir bebê-la também, paradoxalmente, à mortalidade, como viu Herbert Marcuse, que não era crente. Já em vésperas de morrer, voltou-se para o amigo Jürgen Habermas: “Agora sei, Jürgen, em que é que se fundamentam os nossos juízos de valor mais elementares: na compaixão, no nosso sentimento pela dor dos outros. Somos mortais: logo, somos irmãos.” (Continua)
Anselmo Borges no DN