para o Dia dos Fiéis Defuntos
A fronteira da morte sempre me impressionou de forma interpelante, apesar de acreditar firmemente no convite e na promessa de Jesus: “Vinde a Mim… e encontrareis descanso para as vossas almas”. (Mt 11, 25-30); apesar de me rever na bela imagem da ovelhinha que Ele encontra nos silvados, resgata com esforço e dedicação e, cheio de alegria, conduz aos ombros para junto das outras, para o redil comum.
“É inevitável que no dia dos defuntos recordemos os que morreram, especialmente aqueles que por vínculos de sangue, amizade ou admiração, representam algo importante na vida, confessa J. M. Castillo. Mas o mais importante não é olhar o que já passou, mas centrar a nossa atenção no que todos temos de afrontar: o problema do futuro, na morte e depois da morte”. Memória agradecida em relação aos que estamos vinculados pela passado, preocupação inquieta e confiante face ao que nos está reservado de acordo com a misericórdia de Deus e com as nossas atitudes fundamentais durante a vida terrena.
Retomando a minha reflexão que é testemunho, pensava: E agora?. Sinto-me só face aos desafios da vida. Tenho de resolver problemas que não esperava, nem dependiam de mim... Recorro à memória e configuro o rosto dos meus familiares. Peço-lhes que me digam algo, me deem um sorriso, me inspirem uma solução. E o que recebo é um silêncio profundo, definitivo, que procuro interpretar.
Ressoa, então, o eco das suas vidas, das conversas havidas, das respostas dadas para as situações com que nos deparávamos. E a memória faz-se presença e a saudade gera encontro e comunhão. Nasce o desejo de entrar em contacto com eles, de os abraçar, de conhecer a sua sorte, de experienciar a qualidade da sua vida nova.
Sei que esta aspiração tão natural não pode ser inconsequente, nem ficar defraudada. E vem-me a sábia sentença de Santo Agostinho: “Fizeste-nos, Senhor, para Vós e o coração humano andará inquieto, enquanto não repousar em Vós”. E surgem, em catadupa, os ensinamentos de Jesus Cristo, o primogénito dos defuntos, o morto que agora vive para sempre. Acresce o testemunho auspicioso de tantos homens e mulheres, de todas as idades, a abonar a ideia de um final feliz para a aventura humana. “Eu sou a ressurreição e a vida; quem acredita em mim viverá para sempre”. Eu creio, Senhor, mas aumenta a minha fé! E Jesus prossegue: Quem se fizer como eu, assim como eu me fiz humano como ele, tem a mesma vida, vida definitiva, vida eterna. E a melhor maneira, depois do baptismo, de sermos como Jesus, é a eucaristia, celebração sacramental em que Jesus, por meio do pão e do vinho, se faz nosso alimento espiritual. Ele humaniza-se e nós divinizamo-nos.
Já agora. De forma germinal, sacramental. Mas real. É esta a vida eterna: iniciada no tempo, atinge a plenitude na eternidade. É esta a vida que já saboreamos e que, de forma qualitativamente diferente, enche de alegria e satisfação os nossos queridos defuntos.
Gostava de recordar a exultação de Santo Agostinho no magnífico Livro 10 das Confissões: “E, no entanto, amo uma certa luz, e uma certa voz, e um certo perfume, e um certo alimento, e um certo abraço, quando amo o meu Deus (…) onde brilha para a minha alma o que não ocupa lugar, e onde ressoa o que o tempo não rouba, e onde exala perfume o que o vento não dissipa, e onde dá sabor o que a sofreguidão não diminui, e onde se une o que a saciedade não separa”.
Sem esta relação com Cristo, perde-se ou desfigura-se a nossa comunhão com aqueles que nos precederam na história. Com ela, podemos celebrar a sua morte e a sua ressurreição como acção de graças ao Deus da vida, como exercício comunitário de comunhão viva e actual, como solidariedade com a dor dos familiares e chegados, como ânimo para vida e, de modo muito especial, como alimento da nossa fé – sempre precária, sempre ameaçada - na ressurreição. (Andrés Queiruga).
A esta luz, a solidariedade para com os defuntos adquire uma nova intensidade e configuração. Toda a morte é uma interrupção. Algo, positivo ou negativo, que o finado fazia, fica incompleto e reclama continuidade. Surge assim o valor de uma “verdadeira ajuda”, prolongando com amor a sua obra autêntica ou reparando, no possível, aquilo que de defeituoso e negativo tenha deixado.
A comemoração dos fiéis defuntos envolve estas certezas consoladoras na saudade, na memória, na oração, nas flores, na visita aos cemitérios, no silêncio, no reforço dos laços familiares, na alegria de quem alimenta o sonho de, em Jesus Cristo, acontecer o feliz encontro e, juntos, como família, vivermos mais intensa e definitivamente o amor com que Deus nos ama.
Pe. Georgino Rocha