Reflexão de Georgino Rocha
para o Domingo XXIV
Pedro anda preocupado com os ensinamentos de Jesus, tão diferentes das tradições judaicas e das aspirações que alimenta. Sobretudo no desenlace humilhante da vida em Jerusalém, nas atitudes a cultivar no relacionamento humano, na proposta insistente do perdão como caminho de recuperação de quem faz ofensas. A preocupação leva-o a pedir-lhe mais explicações e a pergunta surge directa: “Quantas vezes hei-de perdoar ao meu irmão?” E adianta a medida que pensava ser mais generosa: “Até sete vezes?” E já era muito para um judeu, pois o número sete significa plenitude e faz evocar a sentença do filho de Caim, Lamec, que pretendia vingar a ofensa, não sete vezes, mas setenta vezes sete. Mt 18, 21-35.
João Paulo II, na sua encíclica «Rico em misericórdia», afirma que “um mundo do qual se eliminasse o perdão seria apenas um mundo de justiça fria e irrespeitosa, em nome da qual cada um reivindicaria os próprio direitos em relação aos demais. Deste modo, as várias espécies de egoísmo, latentes no homem, poderiam transformar a vida e a convivência humana num sistema de opressão dos mais fracos pelos mais fortes, ou até numa arena de luta permanente de uns contra os outros”.
A história das ofensas e das dívidas é longa e regista as mais diversas medidas disciplinares, nas culturas conhecidas e nas religiões oficializadas. Entre os judeus, também, como aponta a Bíblia nos seus textos fundamentais. A razão parece simples: na medida usada se dá a conhecer o nível em que o outro é considerado, a gravidade da ofensa à dignidade alheia e a possível recuperação perante os demais, a relação com o Transcendente que frequentemente se solidariza com quem observa a regra estabelecida.
“Ouvistes o que foi dito aos antigos. Eu, porém, digo-vos” – ia repetindo o Nazareno nas sentenças proferidas e manifestando nas acções diárias. Mas, parece que a novidade não era captada, nem pelo seu círculo mais próximo. Narra, então, uma parábola de matriz social, profundamente ilustrativa e interpelante, com imagens familiares e contornos de estremecer.
Um rei quer ajustar contas com os seus servos. Chama o primeiro e, ao verificar a quantia enorme de dívidas, resolve aplicar o código tradicional. Mas perante a súplica ardente deste, perdoa-lhe totalmente, dá-lhe a liberdade e mantém-lhe o posto de trabalho. Admirável atitude! Não indagou nada, nem impôs qualquer condição, não quer saber como contraiu a dívida nem quem se meteu no seu circuito de relações, nada. Apenas faz brilhar a sua compaixão, o seu amor generoso, a sua capacidade de perdoar. Se tivesse optado pela audição às contas, teria muito que andar! Mas a lógica de Deus – porque disso se trata – vai noutra direcção e tem outro sentido.
Pedro deve ter ficado pasmado. A quantia dos talentos era astronómica. Nem o maior rico a possuía. Nem o trabalho de uma vida inteira a pagaria. E o Mestre começa por dizer que a atitude do rei generoso é o exemplo de quem aceita a novidade do perdão anunciado. Nem sete, nem setenta vezes sete. O perdão nasce no amor de Deus e tem a medida do seu coração. Aproximar-se desta medida é a meta do todo o nosso peregrinar ao longo da vida.
O servo perdoado respira “novos ares”, dispõe de outras energias e dá largas aos seus impulsos mais agressivos. Ao encontrar um companheiro que lhe devia uma insignificância, atira-se a ele, agarra-o pelo pescoço e exige tudo o que possuía e quanto antes, sob ameaça de prisão e de alienação de todos os bens, incluindo mulher e filhos. A cena é a repetição da anterior. O devedor humilha-se, pede um tempo de mora, promete satisfazer tudo. Mas nada. A atitude é inflexível. O sufoco asfixiante ameaça a vida. Quantas pessoas são, hoje, o retrato deste servo a desfazer-se! A crise que vivemos e tende a agravar-se drasticamente pode servir de ilustração.
Pedro acompanha a narração com espanto contido. Nem uma ligeira reacção. Aguarda o desenrolar da história-modelo ampliado que introduz um elemento novo: a atitude dos companheiros, testemunhas da cena referida. A solidariedade emerge vigorosa. E sem mais demoras, vão contar ao rei o que tinha acontecido. Não se limitam a comentar ou a esperar pelo desenlace da agressão. É na raiz que se deve tratar da questão. Belo exemplo para quem quer intervir com eficácia nas questões humanas, sobretudo sociais e económicas. O encontro é eficaz. A amnistia é revogada e a sentença, desfeita. O rei sente-se ofendido na sua liberalidade magnânima. E toma, como medida de reposição da justiça, a pena que devia ser aplicada ao servo inclemente. Aceita, embora contrariando a bondade do seu coração, proceder de um modo diferente daquele que tinha usado.
O grupo dos discípulos, a começar por Pedro, acolhe a lição e demora tempo a digeri-la. Como nós. E não é para menos! Mas o caminho está traçado definitivamente por quem o percorreu de forma exemplar.
“A vida constrói-se lentamente e seguindo um processo muito delicado. Se necessita de muita ciência de amor para acompanhar uma vida. Se queremos chegar ao centro escondido de um coração, temos de aceitar que há que fazê-lo muito devagar. Não sete vezes, mas setenta vezes sete”. Cardeal Tolentino de Mendonça.
Pe. Georgino Rocha