sábado, 12 de setembro de 2020

Conversa com Hans Küng. 1

 Crónica de Anselmo Borges no DN

Hans Küng

Na sequência das crónicas sobre J. Ratzinger/Bento XVI, revisitei a conversa que tive em 1979, em Estugarda, com o célebre teólogo Hans Küng sobre o Deus de Jesus. Foi assim: 

Continua fascinado por Cristo. Quero perguntar-lhe: o que pode, na sua opinião, significar hoje o cristianismo? 
Dou-lhe uma resposta simples. Para mim, ser cristão tem ainda hoje sentido, pois, com o cristianismo, pode-se ser Homem num sentido mais profundo e radical. 
Esta afirmação já não é suspeita, pois foi feita também — é com alegria que o digo — pelo novo Papa (João Paulo II). Escrevi um livro com o título Ser cristão. Ora, alguns criticaram-no, porque diziam que nele se falava demasiado do Homem. Mas hoje vê-se cada vez melhor que o cristianismo não é uma pura ideologia para si mesmo. A Igreja não tem a sua finalidade em si mesma. O cristianismo deve ajudar o Homem a ser Homem melhor e mais radicalmente. 
Mais radicalmente em que sentido? 
Creio que, mesmo neste tempo da secularização, é claro para o Homem que ele é mais do que aquilo que pode ver, calcular, manipular. O Homem tem em si mesmo dimensões que vão para lá da satisfação das exigências materiais primárias. Ele procura um sentido em qualquer parte. O Homem quer transcender-se a si mesmo, para além daquilo que tem, que sabe, que ama. Ele quer ir sempre mais além. 
Esta dimensão do Homem está sempre presente. E mesmo pessoas que não estão de modo nenhum satisfeitas com a Igreja nem têm a ver com ela querem cada vez mais ouvir falar desta outra dimensão. Ora, esta dimensão é, se quiser, a dimensão de Deus em todas as coisas. É com isto que o cristianismo tem que ver. E é com isso que a Igreja e a teologia devem ter que ver. 
Para si, Cristo revelou-nos o Homem, porque ele tinha uma relação íntima com Deus. É assim? 
Não podemos separar Deus e o Homem. Todos sabemos, desde que em crianças aprendemos o Pai Nosso, que Jesus anunciou a vinda do Reino de Deus, anunciou a vontade de Deus: “Seja feita a Vossa vontade assim na Terra como no Céu”. Mas se nos perguntarmos o que é a vontade de Deus — e muitas pessoas de facto perguntam: o que é que isso significa para mim? —, recebemos a resposta clara, a partir das suas comparações e parábolas: a vontade de Deus é a realização e a felicidade do Homem. Deus quer a felicidade do Homem. É assim que a História é apresentada, desde a primeira página do Génesis até ao fim do Apocalipse. Deus quer sempre e só o bem do Homem, e o Homem deve também, se quiser fazer a vontade de Deus, colocar-se ao lado dos irmãos. 
A mensagem central do cristianismo é esta: A vida do Homem apenas tem sentido se, por um lado, se orientar no sentido de Deus e se, por outro lado, se orientar no sentido do Homem, não egocentricamente, mas para os outros. Dito na linguagem tradicional: amar a Deus e amar o próximo. 
Mas hoje as coisas complicam-se, porque, por um lado, o cristianismo deveria ser o absoluto, mas, por outro, o cristianismo enquanto absoluto estava de tal modo unido ao eurocentrismo que entrou em crise. E há também outros humanismos, religiões, etc. 
O cristianismo representa para si o absoluto e em que sentido? 
O absoluto do cristianismo foi muitas vezes entendido de modo falso, concretamente quando se entendeu como exclusividade, isto é, atribuiu-se exclusivamente ao cristianismo a verdade, os valores, as normas, a beleza, etc. Hoje devemos reconhecer que mesmo para os católicos, depois do Vaticano II, se tornou claro que também nas outras religiões há verdade, moral, oração, culto de Deus. 
Devemos, por conseguinte, reclamar, não exclusividade, mas unicidade, carácter único. E quando se pergunta que unicidade, então deve-se dizer que o que é único no cristianismo é o próprio Cristo. Quando o vejo como figura concreta, tal como foi, então não pode ser comparado nem permutado com Buda, Maomé, nem com Marx ou Freud. Ele é único para nós, por causa do que ele quis, devido à causa por que se bateu, e definitivo, porque, sendo o Crucificado-Ressuscitado, ele é o enviado de Deus e a sua revelação, não exclusiva, mas definitiva. 
É por isso que, face às outras religiões, ideologias e cosmovisões, devemos ser ao mesmo tempo tolerantes e críticos. Devemos estar de acordo com tudo o que nelas vai ao encontro de Cristo e estar atentos e até recusar tudo o que nelas contradiz Jesus Cristo. 
Diz que Cristo é a revelação definitiva de Deus. Ele é realmente Deus? 
Quando se diz que ele é realmente Deus, pode haver equívocos. Mesmo na teologia tradicional da Trindade, fez-se sempre distinção entre o Pai e o Filho. E, quando na Bíblia se fala de Deus (em grego ò Theós: o Deus pura e simplesmente), pensa-se sempre no Pai. 
Cristo é, na Bíblia, designado como Filho de Deus. Filho de Deus é a expressão correcta para ele. E esta expressão deve hoje ser cada vez mais entendida a partir do Antigo Testamento. De facto, ele próprio era judeu, a mãe, os primeiros discípulos, os evangelistas e os primeiros que transmitiram a tradição eram judeus. O povo de Israel era designado como Filho de Deus, filho de Javé. O rei de Israel também. 
Neste sentido, o próprio Jesus, enquanto Senhor Ressuscitado, é designado como Filho de Deus, isto é, como representante de Deus, Seu plenipotenciário, como aquele que foi investido em dignidade divina, como mediador (representante de Deus junto dos homens, representante dos homens junto de Deus, em sentido pleno e definitivo). Neste sentido, ele é “o Caminho, a Verdade e a Vida”. (continua) 

Anselmo Borges 

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