domingo, 5 de julho de 2020

Será possível a reforma na Igreja?

Crónica de Bento Domingues 


"É revelador o desconforto que as abertas entrevistas e declarações de D. José Ornelas, bispo de Setúbal, estão a provocar em certos meios católicos, quando, de facto, se inserem no mais genuíno espírito do Vaticano II"

1. O grande acontecimento na Igreja Católica, no século XX – e sem o qual seria impensável o Papa Francisco no século XXI – foi o Concílio Vaticano II (1962-1965). O próprio general De Gaulle considerou-o o maior acontecimento do século. O secretário-geral da ONU, Charles Malike, acrescentou: “Talvez o maior acontecimento de vários séculos.”
O Concílio Vaticano I (1869-1870), convocado por Pio IX, num clima de enfrentamento com o mundo moderno e de conflitualidade com os Estados soberanos europeus, teve de ser encerrado devido à ocupação de Roma pelas tropas de Garibaldi.
Como nessa Assembleia tinha sido proclamada a infalibilidade do magistério papal, segundo condições muito precisas, não faltava quem julgasse que, doravante, um concílio era dispensável: o Papa podia falar e decidir por todos.
Essa posição denunciava uma eclesiologia simplista e falta de inteligência acerca do que significa e representa um concílio. Revelava uma concepção mecânica da vida da Igreja e da própria fé.
Em 1922, Pio XI deu a entender que iria retomar o Vaticano I suspenso em 1870. Pio XII retomou um projecto análogo, mas desenvolvido secretamente, de 1948 a 1951, sob a direcção e no clima do “Santo Ofício!” A sua preparação intensa emergiu na encíclica Humani generis (1950) e infiltrou-se ainda nos diversos projectos da própria Comissão teológica preparatória do Vaticano II [1].
Pio XII e a sua herança queriam retomar e completar o Vaticano I. João XXIII insistiu que não era o que tinha anunciado e inaugurado. Era outra coisa. Era o Vaticano II: para um mundo diferente era urgente uma nova consciência eclesial.
No Vaticano II, os seus membros puderam exprimir-se em plena liberdade, os seus decretos e ensinamentos foram verdadeiramente frutos do Concílio e promulgados com uma fórmula simultaneamente conciliar, colegial e pontifícia.
Foi, de facto, um grande acontecimento, para além das significações que lhe reconheceram as personalidades citadas e muitas outras. Foi um acontecimento no próprio sentido da palavra: algo de diferente, inesperado, no curso regular dos fenómenos da natureza ou das manifestações que se esperam de uma instituição. Um acontecimento é um facto que, uma vez ocorrido, afecta o presente e o futuro.
Numa assembleia, sob o ponto de vista sociológico, acontece uma comunicação de ideias e de convicções, na qual cada um vai além daquilo que, sozinho, poderia realizar. Um concílio, sob o ponto de vista teológico, não é uma assembleia qualquer. É, certamente, realizado por homens e conhece sempre tensões e manobras. Resulta, no entanto, num momento privilegiado de concentração da consciência da Igreja. Os pastores das Igrejas locais reúnem-se, nessa qualidade, para um mesmo e único acto de comunhão que afecta todas as Igrejas católicas. Assumem todos a consciência da sua responsabilidade perante Deus e perante o povo, num mesmo e único acto colegial.
Numa deficiente imagem espacial, poderia dizer-se que a Urbis descentrou-se para o Orbis, na medida em que o Orbis tomou posse da Urbis [2].

2. No século XXI, devido a um longo silenciamento do espírito conciliar, ainda experimentamos a dificuldade em entender as virtualidades desse extraordinário acontecimento eclesial e, sobretudo, em realizar o seu projecto e de o recriar segundo a bússola dos sinais dos tempos. Como, em Portugal, não foi preparado, não foi acompanhado, nem estimulada a sua aplicação, continuam as resistências ao seu espírito actuante no engenho e na arte do admirável Bergoglio. É revelador o desconforto que as abertas entrevistas e declarações de D. José Ornelas, bispo de Setúbal, estão a provocar em certos meios católicos, quando, de facto, se inserem no mais genuíno espírito do Vaticano II.
O projecto deste concílio não foi elaborado por um grupo de burocratas romanos sob a vigilância “do Santo Ofício”. Essa tentativa existiu, mas foi derrotada logo no começo. Foi-se configurando, desde a convocatória inesperada de João XXIII, a 25 de Dezembro de 1961, e da sua inauguração a 11 de Outubro de 1962, até ao encerramento das quatro sessões do Concílio, a 8 de Dezembro de 1965. No entanto, desde o começo, apresentou-se como aggiornamento, isto é, pôr a Igreja em dia, o que implicava uma profunda reforma, pois continuava com séculos de atraso.
João XXIII havia traçado o caminho a 11 de Outubro de 1962: “O espírito cristão, católico e apostólico espera, no mundo inteiro, um grande salto para a frente na penetração doutrinal e na formação das consciências, que corresponda mais perfeita e fielmente à doutrina autêntica, que deve ser, porém, exposta segundo os métodos de busca e apresentação usados pelo pensamento moderno. Uma é a substância da doutrina antiga contida no depósito da fé, outra é a formulação da qual pode ser revestida, tendo como regra, para as formas e proporções, as necessidades de um magistério de carácter sobretudo pastoral.”

3. Nada fazia prever que a eleição papal de João XXIII iria causar o abalo que provocou na vida da Igreja e nas suas instituições. Abrigava a subversão de que ninguém suspeitava. Muita gente já perguntou: o que terá motivado – além do Espírito Santo e da sua discreta e fantástica argúcia pessoal – João XXIII a acreditar que a reforma na Igreja era não só necessária, mas possível? Há quem diga que foi um livro maldito de um autor exilado e perseguido pelas instâncias do “Santo Ofício!” O livro chamava-se Vraie et fausse reforme dans l’Église (1950); o autor era Yves Congar, um dominicano, que nasceu em 1904 e morreu, em Paris, a 22 de Junho de 1995. Há, precisamente, 25 anos!
Foi um missionário que, ao visitar em 1952 o núncio Angelo Roncalli, na nunciatura de Paris, o encontrou a ler e a anotar nas margens essa obra proscrita e a dizer ao seu visitante: É possível uma reforma na Igreja?!
Depois de muitos anos de perseguição, esse maldito Congar é surpreendido, no dia 20 de Julho de 1960, ao ler o jornal La Croix, pela notícia: tinha sido nomeado perito do Concílio. Alegrou-se ao ver que, depois de tantos e tantos esforços e sofrimentos, lhe possibilitavam um novo e amplo campo de intervenção. Observou, pouco depois, com tristeza: “Em Roma há toda uma equipa aplicada a sabotar o projecto do Papa!”
Mais uma vez lutou e convenceu. Foi o perito mais solicitado e que mais influenciou os principais documentos do Vaticano II. Deixou uma obra impressionante. Em 1987, contava 1790 títulos. Falta ainda muito para percorrer os caminhos que ele abriu.

Frei Bento Domingues

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