sexta-feira, 24 de julho de 2020

Ouvir com o coração

Crónica de Flausino Silva 
publicada no "Correio do Vouga"


No passado dia 11 celebrou-se o dia de São Bento, Padroeiro da Europa. São Bento de Núrsia, assim referido por ali ter nascido no seio de uma família abastada, exerceu, com a sua vida e a sua obra, uma influência fundamental no desenvolvimento da civilização e da cultura europeias.
Tendo fundado uma das maiores ordens - a Ordem dos Beneditinos -, São Bento de Núrsia foi o criador de um dos mais importantes e utilizados regulamentos de vida monástica, a Regra de São Bento, autêntico compêndio de prática de vida e de espiritualidade.
Num tempo em que se fala tanto da Europa por múltiplas e menos boas razões - pandémicas, económicas, sociais, migratórias e políticas - em que se pressente o ressurgimento e o regresso a egocentrismos nacionalistas e populistas, falar da vida e da importância de São Bento é uma ousadia.
Temos sido fustigados, desde há anos a esta parte e mais intensamente nos últimos tempos, por insidiosas ideias, princípios e decisões de índole secularista, rejeitando toda a influência da Igreja na esfera pública, empurrando-a para dentro dos templos e confinando os assuntos religiosos à esfera privada dos indivíduos.
Ao contrário do que o Papa Francisco tem ousadamente proposto e pregado - uma igreja fora de portas, presente e ativa nas margens, para onde a sociedade atira os mais frágeis e indefesos - ao Estado não agrada que sejam postas a nu estas realidades, que evidenciam a face negra das políticas governativas, que despejam milhões em benefício de interesses minoritários, em detrimento das causas educativas e sociais.
Numa das regras, São Bento estimula os monges a "ouvir com o coração". Se fosse possível verter esta norma monástica nas práticas da governação, que ouviriam o Presidente da República, o Governo, os Deputados e os Líderes Partidários?
Que se aproxima uma tal situação de carência e miséria económica e social - doença, desemprego e fome, tornando imperativo dar as mãos aos mais vulneráveis, a muitos milhares que nunca passaram antes por tais carências e necessidades e estão já, hoje em dia, a recorrer, envergonhadamente, aos apoios das instituições sociais.
Quem vê e ouve as notícias, despreocupada ou displicentemente, não se apercebe destes dramas porque, do Governo, com exceção da área da Saúde, só emanam notícias auspiciosas de milhões atribuídos a uns e a outros, à esquerda e à direita - empresas, trabalhadores em Lay off, TV's e outros mídia - sobrando apenas migalhas, quando sobram, para os milhares de desprotegidos que se dirigem ao Banco Alimentar, à Cáritas e a outras instituições, de iniciativa particular que cuidam deles à custa da solidariedade dos cidadãos.
Ouvir com o coração, como referia o senhor Arcebispo de Braga na homilia da celebração festiva do dia 11, em São Bento da Porta Aberta, é também responder, nesta hora, ao apelo do Papa Francisco para a "globalização da solidariedade".
E ouvir com o coração o grito da natureza, para que se não repitam as atrocidades cometidas no passado recente, originando desequilíbrios e cataclismos imprevisíveis, a morte anunciada de pessoas e espécies, transformando o planeta num lugar de dor e de sofrimento, em que os mais desfavorecidos serão sempre as maiores vítimas.
Ouvir com o coração, ainda, o gemido produzido pelos milhares de imigrantes confinados em campos superpovoados de tendas, sem qualquer privacidade, sem água potável, nem saneamento, à mercê das doenças, privações e maus tratos!
Que pessoas serão amanhã as crianças crescidas nestes campos de morte e de terror? Que valem para os Governos Europeus e para nós cidadãos desta Europa egoísta, essas centenas de milhares de almas votadas à miséria e ao abandono, sem qualquer esperança futura?
Que princípios e propostas faria hoje São Bento, perante esta Europa, egoísta e avara, que esquece as suas raízes civilizacionais cristãs e se compraz na luxúria de consumismos, voltando as costas aos países mais pobres e abandonando os imigrantes como leprosos fora das cidades?
Que palavra dirigiria aos dirigentes europeus de hoje, sobretudo aos dos países mais ricos, incapazes de darem as mãos e repartirem com os menos favorecidos os milhares de milhões de que se arvoram em zeladores, para fazerem face aos efeitos devastadores da pandemia?
Diria, certamente, para abrirem os ouvidos dos corações, tapados pela cera do egoísmo e da indiferença e responder aos apelos de justiça e solidariedade dos mais pobres!

Flausino Silva

Nota: Transcrito, com a devida vénia, do semanário "Correio do Vouga"

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