Crónica de Anselmo Borges
“Quando sairmos desta pandemia, não poderemos continuar a fazer o que fazíamos e como vínhamos a fazer. Não. Tudo será diferente.”
Papa Francisco
1. A crise pandémica faz-nos tomar consciência de outras crises: crise económica, crise social, ecológica, crise moral... E, fala-se pouco dela, mas a crise mais profunda é a crise de Deus. Já Karl Rahner, um dos maiores teólogos do século XX, perguntava: O que aconteceria, se a simples palavra “Deus” deixasse de existir? E respondia: “A morte absoluta da palavra ‘Deus’, uma morte que eliminasse até o seu passado, seria o sinal, já não ouvido por ninguém, de que o Homem morreu.” Váklav Havel, o dramaturgo e político, pouco tempo antes de morrer, surpreendeu muitos ao declarar que “estamos a viver na primeira civilização global e também vivemos na primeira civilização ateia, numa civilização que perdeu a ligação com o infinito e a eternidade”, temendo, também por isso, que “caminhe para a catástrofe.”
Citando G. Gusdorf, G. Minois conclui a sua História do ateísmo “com um quadro implacável e lúcido” da Humanidade do ano 2000: “Vive no Grande Interregno dos valores, condenada a uma travessia do deserto axiológico de que ninguém pode prever o fim.” Já nos finais do século XX, houve a tomada de consciência de “ao eclipsar-se, Deus levou consigo o sentido do mundo”. Continua: o futuro é imprevisível, porque o ateísmo e a fé enquanto compreensão global do mundo andaram sempre juntos. A ideia de Deus era um modo de apreender o universo na sua totalidade e dar-lhe, de forma teísta ou ateia, um sentido. Assim, a divisão hoje não está tanto entre crentes e descrentes como entre “aqueles que afirmam a possibilidade de pensar globalmente o mundo, de modo divino ou ateu, e os que se limitam a uma visão fragmentária em que predomina o aqui e agora, o imediato localizado. Se esta segunda atitude prevalecer, isso significa que a Humanidade abdica da sua procura de sentido.”
2. Imersos ainda nesta imensa catástrofe da covid-19, precisamos de pensar num regresso lento à normalidade. Mas sem cair na ilusão de que, após este parêntesis pandémico, voltaremos ao ponto em que estávamos, para tudo continuar na mesma dinâmica. Isso significaria caminhar para catástrofes sem fim. Impõe-se mudar o paradigma, para uma “nova normalidade”. Também na Igreja. O Papa Francisco advertiu: Podemos continuar na mesma? Não. “Quando sairmos desta pandemia, não poderemos continuar a fazer o que fazíamos e como vínhamos a fazer. Não. Tudo será diferente.”
3. Pergunta-se: fazer o quê? Na presente situação, de que falei, a Igreja deve anunciar Deus. Porque ela ou vive a partir de Deus ou não é Igreja. Mas falar de que Deus? Evidentemente, falar do Deus de Jesus, o Deus Pai-Mãe, cuja causa é a causa dos seres humanos, cujo interesse não é a sua glória, mas a alegria, a realização, a felicidade de todos os homens e mulheres. Anunciar Deus, que é o sentido, sentido último da nossa existência, da Humanidade, da História. A Igreja tem de ser a multinacional do sentido, do Sentido último. De que é que os homens e as mulheres e as crianças, todos, ricos ou pobres, cultos ou ignorantes, precisamos? De alguém para quem valemos, de alguém que reconhece o nosso valor, de alguém que nos reconhece pura e simplesmente — sobre o reconhecimento e as lutas travadas por causa dele escreveu o filósofo Hegel páginas inesquecíveis em A Fenomenologia do Espírito; a revolução de Lutero teve também na base o reconhecimento: o que se chama a justificação não é senão o encontro do Deus que pela graça nos justifica, isto é, que nos reconhece. Valemos para ele. Este é o Evangelho, como diz o próprio étimo: notícia boa e felicitante, mesmo se, muitas vezes, como denunciou Nietzsche, a Igreja fez dele um Disangelho, uma notícia de desgraça.
4. Não há o perigo de Deus e a religião se tornarem “o ópio do povo”, como denunciou Karl Marx? Não. Porque, na compreensão autêntica do cristianismo, não é possível amar a Deus sem amar o próximo. Também aqui, há uma revolução: o amor ao próximo, a todos, é amor teológico. Não há ninguém, que saiba ler em profundidade, que não esbarre no escândalo do que se lê no Evangelho segundo São Mateus, capítulo 25, referente ao Juízo Final, isto é, ao juízo sobre a História. O que lá se lê é que Jesus, no exame final, não pergunta pelo culto a Deus, mas por aquilo que fizemos ou deixámos de fazer aos outros, e tudo perguntas por realidades bem materiais e mundanas: dar de comer, de beber, vestir os nus, visitar os doentes, os presos... O cristianismo põe como critério de salvação o que se faz pelo outro humano e, neste sentido, é uma fé para lá da confessionalidade religiosa. Assim, a Igreja tem de ser também a multinacional da proclamação do bem e da justiça e da sua prática. Como instituição global, a única, deve continuar a ser voz político-moral dos que não têm voz.
5. O Deus cristão é o Deus criador, e entregou-nos a Terra como a nossa casa comum, como “jardim” que deve ser cultivado e não explorado como se fosse tão-só um reservatório de energias ao dispor, sem limites nem cuidado. Por causa da pandemia, em pouco tempo, a emissão de gases com efeito de estufa e a poluição diminuíram, o que mostra que a responsabilidade antropogénica nas alterações climáticas é inegável. Neste domínio, o Papa Francisco publicou uma encíclica histórica e revolucionária, a Laudato Sí. Dois conceitos, essenciais: a “ecologia integral” e que tudo está interligado. Outra missão da Igreja para o mundo: desenvolver uma ecoteologia. Porque o grito da natureza é o grito dos pobres e de todos.
6. Então, que nova organização para a Igreja? É o tema da próxima crónica.
Anselmo Borges