sexta-feira, 10 de julho de 2020

Ainda o naufrágio do Ilhavense II

Memória - Um texto de Helder Ramos 

Manuel Ramos Casqueira, num dóri do Ilhavense II
1954, Terra Nova, no Virgin Rocks

A propósito do testemunho de António Tomé da Rocha Santos, publicado na Agenda Viver em Julho, ocorreu-me evocar memórias do meu pai, Manuel Ramos Casqueira, que, à época a que a memória reporta, era escalador especial no lugre Ilhavense II. 
Ainda não tinha sete meses de matrimónio cumpridos, quando, naquele fatídico 15 de agosto de 1955, ocorreu o seu segundo naufrágio, desta vez causado por um incêndio vindo das máquinas. 
Essas memórias nunca mais saíram do seu «álbum», por terem felizes cálculos que a vida se foi encarregando de fazer pelo tempo fora. É que o naufrágio deu-se num dia bem lembrado para os católicos, daí as manifestações de profundo reconhecimento da tripulação, quando chegados a bordo do USCGC Mendota, uma embarcação preparada para manobras militares, mas que fazia vigilância marítima às embarcações no Atlântico Noroeste
Recordava o meu pai que as manobras de acostagem deixaram o pessoal bastante receoso, já que a idade de certos homens não lhes permitia arrojarem-se lestamente para a rede que o navio da guarda-costeira lançara na direção do Ilhavense II. E as quase 11 horas de espera pelo navio-patrulha já não dava grandes esperanças de salvamento. 
Lançado o alerta e depois dos dóris feitos ao mar, vendo o incêndio que alastrava ao convés, apenas restava esperar. Só quando passava das 20 horas é que a corveta foi avistada. Remaram horas e horas, até que a embarcação preparou o salvamento, com sucesso, graças à disciplina da tripulação. Alguns mais afoitos pediam que a rede não se desprendesse da amurada, para que, bem agarrados a ela, alcançassem segurança junto dos canadianos. E até o cão de bordo fora salvo, para contentamento dos marinheiros. 
Pude confirmar este relato junto de um amigo de St. John's, que ainda hoje se dedica a transcrever relatos de naufrágios nas costas da Terra Nova. O texto que me enviou, aí há uns 15 anos, foi traduzido ao meu pai e tudo bateu certo, conforme o que velhos homens daquelas paragens contaram. Inclusivamente, um tinha colaborado no resgate da tripulação e no encaminhamento dos nossos conterrâneos e compatriotas. 
E estas memórias tão fundas e verdadeiras tinham uma profunda razão de ser: mal sabia o meu pai que, no ano em que completaria 26 anos de vida, passaria tal provação. Porém, tais riscos e sacrifícios tiveram, 26 anos depois, uma recompensa merecida, pela alegria do nascimento da Sua filha mais nova, Assunção Mariana, num dia que, para sempre, lhe evocaria um sinal de que um homem com Fé consegue ver muito mais vida para lá das circunstâncias penosas por que pode passar. É que, casado no fim de janeiro desse mesmo ano, sem filhos, temeu severamente o pior. Mas não estava sozinho.

Helder Ramos

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