Crónica de Bento Domingues no PÚBLICO
"Esta crise obrigou-nos a parar. Mas suspeito que este medonho susto ainda não conseguiu alterar, em profundidade, a mentalidade geral"
1. Chegam-me de vários lados, com propósitos diferentes, notícias e comentários sobre o comportamento lamentável de algumas correntes do alto e baixo clero unidas no afrontamento das medidas recomendadas pela OMS e que a DGS e os governos impõem para evitar o contágio da covid-19. Unidas também no declarado incitamento ao seu desrespeito, a nível nacional e internacional.
Essas movimentações ressurgem quando muita gente já se sente desesperada entre o apertado confinamento, o emprego perdido, a ronda da pobreza, a ameaça da morte e um futuro de pouca esperança. A agitação de algumas tendências do clero revela, no entanto, outra conhecida e renovada motivação: atacar a pastoral do Papa Francisco para que as linhas mais inovadoras do seu pontificado e do seu estilo morram e sejam enterradas com ele.
Procura-se fazer acreditar que Bergoglio é um instrumento das forças que desejam acabar com a prática religiosa, já muito enfraquecida, numa Europa laicizada. É preciso estar em sintonia com maçónicos, comunistas e ateus para proibir missas abertas ao público e impedir as grandes e tradicionais manifestações da fé católica. Este Papa, dizem os seus adversários, acaba sempre por fazer o jogo dos inimigos da Igreja, transformando-a numa banal associação filantrópica com igrejas de portas fechadas.
Para a grande maioria dos católicos, a relevância do exibicionismo desse clero, com mitra ou sem mitra, depende, em grande parte, do acolhimento que lhe é dado em certos meios de comunicação e não pela sua real representatividade.
Por mim, não posso deixar de louvar a coragem do Bispo de Leiria-Fátima – em harmonia com a Conferência Episcopal – pela atitude exemplar, em relação à maior manifestação da religiosidade popular de Portugal e do Ocidente. Mostrou, pela sua decisão, que para Jesus Cristo a maior glória de Deus é o cuidado com a saúde e a vida dos seres humanos. Esse cuidado vale mais do que o cumprimento literal de todas as promessas e sacrifícios. Deus lê nos corações e o mal pede mais combate inteligente do que teologuemas sacrificiais, que insultam piedosamente o infinito mistério que envolve a nossa condição.
O Bispo António Marto tornou-se testemunha do sentido, para o nosso tempo, do célebre diálogo de Jesus com a Samaritana junto ao poço de Jacob [1]: os verdadeiros adoradores de Deus não são os que adoram em Jerusalém ou em Garizim, em Roma ou em Meca, em Fátima ou em Lourdes, mas aqueles que O adoram em espírito e verdade, dentro ou fora de qualquer igreja. O verdadeiro e sagrado templo da divindade é o ser humano, no acolhimento do outro como irmão.
Com esta observação, não estou a desvalorizar a importância dos espaços sagrados nem a simbologia do calendário das celebrações da fé cristã. O espaço, o tempo e a itinerância são dimensões fundamentais da nossa condição que não pode prescindir da linguagem de ritos sagrados e profanos.
Participei, muitas vezes, no 13 de Maio na Cova da Iria e nunca senti nada de tão comovente como a imensa Procissão das Velas e do Adeus, ambas completamente inúteis, como são os grandes poemas e como é este: o de um povo sofrido que não desiste nem de partir nem de regressar. Fátima é o barco e o cais das nossas reais e míticas viagens na escuridão do mundo [2].
2. Vivemos na civilização da velocidade, da pressa em chegar sempre antes do outro. Esta crise obrigou-nos a parar. Mas suspeito que este medonho susto ainda não conseguiu alterar, em profundidade, a mentalidade geral. Continuamos a perguntar quando poderemos regressar à vida normal. Aquilo a que chamamos vida normal já mostrou, nesta calamidade, as suas estruturais anormalidades semeadas de velhas e novas desigualdades vergonhosas. E surge a pergunta: o que é possível e desejável fazer para acudir ao presente e preparar um futuro viável?
As retóricas descrições de tudo o que está mal – à vista de quem quiser ver – e as retóricas das receitas prontas a resolver todos os problemas parecem-me que confiam demasiado no poder mágico das palavras. A eficácia da linguagem performativa é de outra ordem.
Fazer coincidir a rapidez do dizer com o acontecer das transformações sociais pertence à ordem do milagre, pouco frequente, no devir da natureza, da cultura e da investigação.
Os sistemas autoritários pretendem substituir, pelo quero, posso e mando, a lentidão das decisões democráticas de consensos alargados. No entanto, se as democracias se perderem na exibição de labirínticas discussões clubísticas, acabam por cansar os cidadãos que reclamam e esperam resultados, em todos os domínios, para a construção do bem comum.
Será possível combinar as respostas às urgências maiores da população mais pobre e ir alterando o sistema económico dominante e insustentável, assente na exploração ilimitada de recursos limitados e em perpetuar escandalosas desigualdades sociais?
Há quem pense que é este o tempo certo para delinear futuras estratégias económicas baseadas na tríade inseparável: biodiversidade, alterações climáticas e saúde pública [3].
3. Perante a tragédia que estamos a viver e pensando no futuro, é recorrente a expressão nada pode continuar como dantes. Quem assim fala manifesta vontade de mudança, de conversão. Quem, pelo contrário, não quer perder a vida altamente privilegiada de que disfruta, até da crise procura servir-se para alargar os seus injustificados privilégios.
Em 2015, o Papa Francisco publicou a encíclica Laudato SI sobre o cuidado da Casa Comum que inscreveu no movimento ecológico mundial. É um documento minucioso e abrangente que mostra a raiz humana da crise ecológica, fruto e causa de muitas outras crises. A ecologia integral que propõe envolve múltiplas dimensões: ambientais, económicas, sociais e culturais, vida quotidiana, seguindo sempre o princípio do bem comum e da justiça intergeracional. Não se limita aos aspectos doutrinais. Apresenta também linhas de orientação e acção, para vencer a indiferença geral e os obstáculos levantados pelos interesses insensatos dos poderosos.
Nada disto, porém, é possível sem uma autêntica conversão ecológica e uma espiritualidade que alimente a paixão pelo cuidado do mundo e não pela sua dominação destruidora. Por outro lado, para chegar à conversão ecológica é indispensável a conversão do desejo distorcido. Quem deseja tudo para si próprio só pode ver, nos desejos dos outros, rivais a dominar ou abater. Não sente alegria com a diferença.
Frei Bento Domingues no Público
[1] Jo 4, 1-42
[2] Frei Bento Domingues, A Religião dos Portugueses, Temas e Debates – Círculo de Leitores, 2018; ver também Anselmo Borges, Fátima e a covid-19, in PÚBLICO, 13.05.2020
[3] Maria Amélia Martins-Loução, O tempo certo, in PÚBLICO, 26.04.2020