domingo, 10 de maio de 2020

A MINHA DÍVIDA PARA COM D. MANUEL VIEIRA PINTO

Crónica de Bento Domingues no PÚBLICO

Com D. Manuel Vieira Pinto, as comunidades cristãs eram incentivadas a uma radical criatividade. Nascia uma nova forma de ser Igreja, na linha do Vaticano II, mas a partir da base.

1. Os Dominicanos viveram uma longa história em Moçambique. A Congregação de Santa Cruz das Índias não confinava a sua acção missionária aos continentes asiático e australiano, orientava a actividade de todos os dominicanos portugueses em terra de missão, quer se desenvolvesse na Ásia, na Oceânia ou na África.
Em Moçambique, trabalharam desde o séc. XVI até ao séc. XIX. É uma história que está, em grande parte, por fazer, quer sobre momentos de fidelidade missionária, quer dos períodos de declínio ou de decadência. Destaco, apenas, que o primeiro religioso de Moçambique foi um dominicano. Por outro lado, a Etiópia Oriental e Vária História de Cousas Notáveis do Oriente [1], de Frei João dos Santos, continua uma obra de referência obrigatória, “uma obra singular no panorama da literatura portuguesa seiscentista”.
Os Dominicanos portugueses só voltaram a formar uma comunidade em Moçambique, na Diocese de Nampula, com D. Manuel Vieira Pinto, falecido no passado dia 30 de Abril. Quando, depois da independência, foram impedidos de viver em comunidade e de continuar a importante obra social que tinham desenvolvido, regressaram a Portugal [2]. Frei João Domingos ainda estudou a viabilidade de um regresso. Concluiu que seria preferível começar tudo de novo em Angola, para onde foi, em 1982, com Frei Gil e Frei José Nunes. Os frutos mostraram, e continuam a mostrar, que ele tinha razão.
Apesar disso, o Bispo de Nampula não dispensou o contributo dos Dominicanos. Como membros do Instituto S. Tomás de Aquino (ISTA), vários dos seus professores, nomeadamente João Domingos, Luís França, Raimundo de Oliveira e eu próprio fomos chamados a colaborar na reciclagem dos missionários e na formação dos Animadores de Comunidades.

2. Durante vários anos, a partir de 1981, desloquei-me, muitas vezes, a várias dioceses de Moçambique para realizar um programa desenhado por D. Manuel Vieira Pinto e pelos seus colaboradores. Os cursos mais longos eram desenvolvidos no Centro Catequético do Anchilo, perto de Nampula. Era uma escola de inculturação da fé cristã muito popular e muito exigente.
Esta Escola já tinha uma longa história. A partir da Assembleia Nacional de Pastoral, na Beira, em 1977, e de se ter enveredado por uma Igreja de pequenas comunidades, verifiquei que não só em Nampula, mas em Pemba, em Quelimane, na Beira e no Maputo, o catolicismo e as Igrejas não estavam derrotados, como julgava e dizia Marcelino dos Santos, vice-presidente da Frelimo.
Esta orientação das Igrejas tinha muitas dificuldades, mas também enveredou por experiências verdadeiramente criadoras. Em Nampula, que na época englobava a actual diocese de Nacala, todos os caminhos eram possíveis. Em Portugal, estava habituado à paralisação de iniciativas. Com D. Manuel Vieira Pinto, as comunidades cristãs e os seus animadores, ajudados por congregações missionárias, femininas e masculinas de vários países, eram incentivadas a uma radical criatividade. Nascia uma nova forma de ser Igreja, na linha do Vaticano II, mas a partir da base.
A minha grande dívida para com D. Manuel Vieira Pinto consiste em ter tido a possibilidade de acompanhar, do ponto de vista teológico, essa caminhada. Isso obrigou-me a um estilo de cursos nos quais os Animadores de Comunidades eram chamados, não a consumir uma teologia europeia já feita, mas a participar activamente na elaboração de uma teologia pastoral inculturada, a partir das suas próprias experiências, vividas ao longo do ano. Esse trabalho aprofundou e alargou a minha prática teológica para sempre.
Os missionários e os Animadores de Comunidades podem não ter aprendido grande coisa comigo, mas eu descobri duas realidades. Existia uma teologia africana, quase desconhecida, onde trabalhei. Era preciso divulgá-la. Por outro lado, vi a possibilidade de se fazer uma teologia africana de estilo bastante diferente, quer da elaborada nas Faculdades de Teologia, quer da que resultava das teses de doutoramento, realizadas na Europa, sobre temas africanos. Em geral, pareciam bastante longe da prática daquelas Comunidades. Ora, se havia Comunidades de base pujantes, tinham de ser elas a elaborar uma nova teologia africana.
Por essas duas razões orientei os Cadernos de Estudos Africanos, edição do Centro de Reflexão Cristã, de Lisboa. 
Esses Cadernos deram a conhecer o que se fazia no resto da África e o que ia acontecendo no espaço de língua oficial portuguesa. Foram publicados sete números, de 1977 a 1990. Não acabaram por falta de trabalho, mas por falta de quem financiasse a sua publicação.

3. Não devo, apenas, a D. Manuel Vieira Pinto a oportunidade de participar numa realidade africana muito frágil, mas entusiasmante. Devo-lhe também, indirectamente, o encontro com diversas práticas da teologia da libertação da América Latina. Ao ser convidado a participar num Congresso de Realidades Latino-Americanas, no México, organizado pelo Centro Bartolomé de Las Casas (Cusco, Perú), devido ao que tinha escrito sobre a Teologia de Inculturação [3], passei a colaborar com esse Centro. Como desenvolvia a sua actividade em vários países da América Latina, descobri um novo continente teológico, muito ameaçado.
D. Manuel Vieira Pinto é muito conhecido, e com razão, pelo seu enfrentamento com a guerra colonial, pelo exílio imposto, pela denúncia do embuste do regime marxista-leninista e pela guerra civil que, após a independência, não realizou a libertação do povo moçambicano. Sobre estas questões existe alguma bibliografia [4].
Merece ser muito mais conhecida, mais aprofundada e mais divulgada a originalidade do seu contributo para uma nova eclesiologia prática de abertura a novas experiências de ministérios, nas Comunidades cristãs.
Não introduziu, apenas, em Portugal, o Movimento por um Mundo Melhor. Como Bispo congregou energias, pessoas e grupos, leigos, padres e religiosos, para uma Igreja que tinha pouco a ver com a que encontrou ao chegar a Nampula.
O que não for aprofundado, de forma inovadora, será esquecido. Será uma traição à memória de Vieira Pinto.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO 

[1] Cf. Edição da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1999. A 1.ª edição é de 1609
[2] Frei Rogério Amorim era o pároco da Sé Catedral e da paróquia de Santa Maria. Toda a comunidade dominicana desenvolveu um grande e variado centro social
[3] Fr. Bento Domingues, O.P., Verdades e ambiguidades da Inculturação Missionária, in Igreja e Missão, n.º 124-125 (Abril-Setembro/84), pp. 509-592
[4] José Luzia, Manuel Vieira Pinto: O Visionário de Nampula, Paulinas, 2016, com bibliografia; aborda também, com belos testemunhos, Vieira Pinto como Administrador Apostólico das Dioceses da Beira e de Pemba. 7Margens tem publicado muitos e interessantes testemunhos, fazendo memória do Bispo Vieira Pinto.

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