domingo, 9 de fevereiro de 2020

Caminhar juntos

Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO

"O sentido eclesial da palavra sínodo é muito belo: caminhar juntos. Serve para dizer que, na Igreja, o Papa não é um monarca absoluto."

1. A autenticidade dos sínodos tinha sido atraiçoada durante décadas, mesmo depois do Vaticano II. O Papa Francisco decidiu, por muito boas razões, revalorizá-los. Alguns já deram muito que falar como, por exemplo, o sínodo dos bispos sobre a família, sobre os jovens, sobre a Amazónia e agora, depois muitos debates e mal-entendidos, começou o da Igreja católica alemã.
As pessoas que abominam a democracia receiam agora a desgraça de ver a liderança da Igreja Católica meter por um caminho condenado no século XIX. Têm saudades do tempo em que tudo parecia sujeito à vontade e à voz infalível dos Papas orientados pelo Vaticano I, isto é, de alguém que resolvia tudo por uma suposta iluminação divina, sem ter de prestar contas a ninguém. Num momento em que uma onda autoritária está a ganhar força política em vários países, certos movimentos, de grande poder financeiro, alimentam a esperança militante de contrariar as iniciativas de Bergoglio, que julgam ter sido eleito num momento de distracção do Espírito Santo.
O sentido eclesial da palavra sínodo, de origem grega (sýnodos), é muito belo: “caminhar juntos”. Serve para dizer que, na Igreja, o Papa não é um monarca absoluto. Dado que, em Roma, viveram e morreram dois grandes pilares dos começos do cristianismo – Pedro e Paulo –, considera-se que o bispo de Roma tem o primado entre todos e com todos os bispos da Igreja espalhados pelo mundo. O seu primado não substitui os outros bispos, que, nas suas dioceses, devem agir de forma que responsabilize todos os católicos no fervor cristão ao serviço da sociedade.
É normal a convocatória de sínodos diocesanos. Para serem autênticos, a sua composição deve reflectir as diferentes sensibilidades da Igreja diocesana. O Papa, bispo de Roma, pode, e por vezes deve, convocar sínodos dos bispos. A sua composição, dominada por pessoas do sexo masculino e celibatárias, não é a mais adequada para abordar certas problemáticas como as referentes à família. Se o sacerdócio dos leigos cristãos fosse levado a sério, esse género de anomalias seria menos frequente. Como, nos diferentes países, existem conferências episcopais, é também normal a convocatória de sínodos nacionais. É, agora, o caso do sínodo da Igreja Católica alemã.
O que nunca deve ser esquecido é a observação lapidar de Santo Agostinho: “Convosco sou cristão” – e é o principal –, “para vós sou bispo”, presto um serviço.

2. Durante vários meses, verificou-se ou imaginou-se um confronto entre esta assembleia alemã e o Vaticano. O legado de Lutero não morreu. Entretanto, o cardeal Reinhard Marx, presidente da Conferência Episcopal Alemã, encontrou-se com o Papa Francisco e com o cardeal Marc Ouellet, prefeito da Congregação para os Bispos, para reflectir sobre questões centrais do sínodo.
São quatro os temas colocados na agenda pelo estudo que o episcopado encomendou a peritos de três universidades: poder e participação na Igreja, sexualidade e amor nas relações humanas, vida sacerdotal e celibato, lugar da mulher nos serviços e ministérios da Igreja. Mas existem outros, como, por exemplo, a pastoral da Igreja no seu conjunto, a força do Evangelho de Jesus Cristo, o lugar de Deus nas vidas das pessoas no nosso tempo. Apesar de a Igreja já não ser eurocêntrica, a Europa e, nesta, a Alemanha têm uma nova configuração de povos, culturas e religiões que nem o sínodo nem as outras igrejas podem ignorar.
Para já, a primeira sessão sinodal decorreu num clima de grande abertura. Um numeroso grupo de delegados sinodais, bispos e leigos, teólogos e delegados de grupos e movimentos, jovens e adultos, funcionários da Igreja e religiosas, sucederam-se no uso da palavra, num clima de abertura, que a moderadora da sessão propôs como método: “Ouvir – interpretar – responder”. Para os interessados, as sessões estão a ser transmitidas através da Internet.
O leigo T. Sternberg, presidente do comité central dos católicos alemães, manifestou a confiança de que este caminho sinodal possa convencer os responsáveis da necessidade de instalar, na Igreja, “estruturas participativas”, que permitirão uma reflexão e um debate permanentes, sem medo, sem partidarismos, sem preconceitos.
Uma minoria de bispos e de grupos conservadores, que participam no sínodo, continua a acompanhar este processo com cepticismo. Mas como disse o cardeal Marx, trata-se de criar um espaço em que possamos falar uns com os outros, não uns contra os outros, com respeito pela palavra do outro. O bispo de Essen sublinhou que se procura introduzir, na Igreja, uma cultura do debate, na abertura, sem medo de conflitos.

3. Uma Igreja autocentrada nas questões internas de funcionamento corre o risco de se perder da sua verdadeira missão no mundo contemporâneo tão complexo, contraditório, fragmentado e globalizado. As mudanças, em todos os domínios, são tão rápidas que não se compadecem com a defesa repetitiva de formulações carimbadas de ontológicas, dogmáticas, definitivas.
O terminal da fé não são as formulações do Credo, mas a própria realidade misteriosa de Deus revelada na espessura da evolução da natureza, da história e na prática terrestre de Jesus cujo Espírito deve alimentar a escuta dos sinais dos tempos em todas as situações actuais.
Como dizia Tomás de Aquino, não acreditamos no Credo e nas suas formulações cunhadas ao longo do tempo. São as mediações que foi possível arranjar, num determinado contexto histórico e cultural, para a caminhada dos crentes. As chamadas formulações dogmáticas são o resultado de debates, na Igreja, devido às controvérsias que a inculturação do Evangelho suscitou. É normal que, depois de um concílio realizado para exprimir a unidade da Igreja, mediante fórmulas de consenso, se julgasse que eram definitivas. Eram definitivas enquanto foram, mas não fecharam as futuras expressões e incarnações culturais.
Ao dizer isto, suponho que o relativismo não vive no horizonte da busca da verdade. Para ele vale tudo e as formulações são todas, não só inadequadas, mas insignificantes. No entanto, as fórmulas dependentes da fé no mistério de Deus não têm todas a mesma importância. Foi por isso que, no Vaticano II, se falou de uma “hierarquia de verdades”, isto é, são afirmações que não têm todas o mesmo peso.
Finalmente, o sínodo alemão não pode ignorar que o contributo dos cristãos foi essencial para o projecto da União Europeia. No momento em que esta está ameaçada, não seria a altura de retomar essa herança agregadora de cristãos e não-cristãos, para não se perder a realização mais significativa do mundo contemporâneo?

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

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