domingo, 5 de janeiro de 2020

O nosso futuro é agora

Crónica de Bento Domingues 
no PÚBLICO

"Já estamos no novo ano. É um ano para a nossa conversão que tem muitas dimensões."

1. Em alguns ambientes, a espiritualidade está na moda. Quase se poderia dizer: espiritualidade sim, religião não. Quem assim se exprime pode ter muitas queixas das crenças, dos rituais e dos preceitos das instituições religiosas ou, apenas, preconceitos. Raramente é fruto de investigação, de estudo. A investigação e o estudo parecem reservados ao domínio das ciências. A espiritualidade apela à subjectividade de quem não se contenta com o mundo empírico e procura não só um sentido para a vida, mas formas de viver esse sentido. Existem sabedorias e espiritualidades sem qualquer afirmação explícita de Deus como acontece, por exemplo, no budismo, mas não só.
No campo católico, a espiritualidade sempre se conjugou no plural. Por exemplo, espiritualidade beneditina, franciscana, dominicana, carmelita, inaciana e as espiritualidades das congregações religiosas dos séculos XIX e XX. Se elas marcaram a história também a história as marcou a todas. Actualmente, devido à secularização do Ocidente, a grande moda são as importações das chamadas espiritualidades orientais, quase sempre bem destiladas.
O anti-intelectualismo, no campo religioso e espiritual, é, hoje, de regra entre os cristãos em geral e até entre seminaristas, padres e membros de congregações religiosas [1]. Parece que a razão cientifico-técnica esgotou todas as formas de razão. No entanto, a mística de Santa Teresa de Jesus e de S. João da Cruz nunca dispensou a companhia de grandes teólogos. A escola renana casou a mística com a teologia, como se pode observar no mestre Eckhart!
Fala-se facilmente de espiritualidade bíblica ou patrística, dispensando as exigências do conhecimento árduo dos mundos bíblicos ou patrísticos.
Dizer isto não significa desprezo pela dimensão mística da vida e dos seus caminhos. Mesmo os místicos são pouco estudados. As observações feitas referem-se, sobretudo, às espiritualidades género chá de tília e comércio de auto-ajuda, onde há de tudo.

2. Pelo Natal e pela Páscoa, são frequentes as publicações sobre as fontes cristãs da cultura ocidental. Este ano, em parceria com a Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém, Le Figaro/Hors-Serie reuniu biblistas, arqueólogos, historiadores e teólogos para examinar o Caso Jesus no crivo da História. Narra as principais etapas da sua missão, decifrando os sete erros mais comuns sobre Jesus: analisa o seu julgamento, a revolução religiosa da qual ele foi o instigador, os retractos de Maria, João-Baptista, Maria Madalena, Pôncio Pilatos, etc..
Está sumptuosamente ilustrado por Giotto, Bosch, os mestres vidreiros de Chartres, escultores românicos e góticos, Ghirlandaio, Titoiano, Tintoretto, Tiepolo, Fra Angélico e muitos mais, para dar às narrativas do Novo Testamento as expressões mais célebres da vida de Jesus Cristo no esplendor da arte ocidental.
O conjunto é coroado por uma longa entrevista ao P. Olivier-Thomas Venard, O.P., sobre o colossal programa BEST (Bíblia E Suas Tradições), da Escola Bíblica de Jerusalém, que coordena dezenas de investigadores para uma edição comentada das diferentes versões da Bíblia. Renova totalmente a sua leitura, dando livre acesso às suas diferentes versões, comentadas versículo a versículo, do ponto de vista teológico, histórico, arqueológico, artístico, literário… A abordagem da Bíblia, nas suas tradições, é um programa lançado para ter em conta as grandes metamorfoses das ciências bíblicas nos últimos cinquenta ou sessenta anos. BEST propõe-se recolocar a Bíblia no coração das culturas e das civilizações de que se alimentou e que ela, por sua vez, influenciou.
Não se esqueça, porém, que, no dizer de Teixeira de Pascoaes, “A Bíblia é um Epitáfio, um livro escrito. Mas o Livro da Vida, citado por S. Paulo, existe na inspiração dos Poetas, eternamente irredutível a papel e tinta ou a qualquer substância morta” [2]. De facto, na 2.ª Carta aos Coríntios, está dito: é Deus “que nos torna aptos para sermos ministros de uma nova aliança, não da letra, mas do Espírito; porque a letra mata, enquanto o Espírito vivifica” [3]. Tomás de Aquino sublinha que a própria letra dos textos do Novo Testamento mata se não for acolhida como voz do Espírito que o inspirou.

3. Já estamos no novo ano. O Frei José Nunes, provincial dos dominicanos, na sua mensagem de votos de Bom Ano, recordou a sabedoria da Mafalda Quino: as pessoas esperam que o ano que vem aí seja melhor que o anterior, mas não esqueçamos que o ano que vem aí também espera que as pessoas sejam melhores! É um ano para a nossa conversão que tem muitas dimensões.
Olafur Eliasson, no catálogo da exposição que fez em Serralves, no ano passado, escreveu: “não olhemos para o passado para definir o presente. O nosso agora passou a ser definido pelo futuro. As projecções sobre as consequências das nossas acções de hoje começaram a moldar e a orientar as nossas vidas. E isto é novo. A concepção do mundo da minha geração e das gerações anteriores foi definida por noções do passado, de consumismo, de crescimento, de acumulação de riqueza – e não posso fingir estar isento a essa perspectiva. Vimos o presente através da lente do que o tinha precedido. Esperávamos que o mundo fosse previsível e que o futuro se baseasse no passado. Hoje em dia, na era do Antropoceno, tornou-se claro que temos de mudar de atitude – o presente e o futuro estão a tornar-se cada vez mais imprevisíveis. A natureza já não nos pertence (nunca pertenceu) para a explorar livremente; somos parte dela. Agora é evidente que não podemos continuar a viver como vivemos no passado e que todos os aspectos da sociedade se terão de adaptar à crise climática. Muito do que hoje tomamos por garantido como uma actividade normal, como algo que fazemos diariamente, tornar-se-á obsoleto ou até ilegal daqui a dez anos. A geração mais jovem está ciente disso. Eles começaram a ver o presente à luz do futuro que eles próprios têm de moldar, aqui e agora. Não se trata apenas de viver de forma ecológica; trata-se também do nosso sentido de justiça” [4].
Hoje, Domingo da Epifania, é dia da revelação de um Deus pobre, humanado e irmanado com os pobres. Desse Deus, os sacerdotes das religiões nunca ouviram falar, como conta Sophia de M. B. Andresen [5].
Tornemos bom 2020!

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] Mariano Ruiz Campos, Por qué cuesta tanto apreciar la labor del teólogo hoy?, Teología Espiritual LXI (2017), 309-350
[2] Teixeira de Pascoaes, Aforismos, Assírio & Alvim, 1998, p. 39
[3] 2 Cor 3, 6
[4] O v/nosso futuro é agora, pp.51-52
[5] Os três Reis do Oriente, in Contos exemplares.

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue