Crónica de Anselmo Borges no Diário de Notícias
«A crise do nosso tempo manifesta-se essencialmente no esquecimento e obturação das grandes perguntas, decisivas, perguntas metafísico-religiosas. Assim, o que resta é uma cultura empobrecida e uma política reduzida a negócios, sem horizonte autenticamente humano. Depois, é o que se sabe, está à vista.»
Terminados os festejos da passagem de ano e já no novo ano de 2020, é bom e mesmo urgentemente necessário parar para reflectir sobre o enigma maior do tempo. É, que queiramos ou não, com a passar do tempo, somos confrontados com aquela arrasadora constatação do historiador e filósofo R. Wittram na sua obra Das Interesse an der Geschichte: “A mim os grandes acontecimentos históricos do passado afiguram-se-me como cataratas geladas, imagens congeladas pelo gelo da vida que se foi e nos mantém à distância. Gelamos à vista dos grandes feitos: reinos caídos, culturas destruídas, paixões apagadas, cérebros mortos. Se tomamos isto a sério, podemos sentir que nós, historiadores, temos uma ocupação bem estranha: habitamos na cidade dos mortos, abraçamos as sombras, recenseamos os defuntos”.
Por isso, a questão do tempo é também a questão de Deus; por outras palavras, perguntar pelo tempo é perguntar por Deus. De facto, como questionava Theodor Adorno, um dos fundadores da Escola Crítica de Frankfurt, como se poderia falar de reconciliação à maneira do sonho marxista, por exemplo, se ela valesse apenas para os vindouros, numa sociedade realizada e sem conflitos? Nessa situação, o que seria de todas as vítimas da injustiça da História e de todos os mortos do passado? O tempo com final, na perspectiva bíblico-cristã, é o tempo da esperança na salvação de Deus para todos. Aquele Deus de quem o teólogo Karl Rahner disse que é “o Futuro Absoluto”, Futuro de todos os passados, Futuro de todos os presentes, Futuro de todos os futuros, na consumação e plenitude da existência de todos os homens e mulheres de todos os tempos.
Também o grande filósofo, Walter Benjamin, um marxista especial, de raiz judaica, perseguido pelo nazismo, se confrontou com o mesmo enigma. Na célebre tese 9 do seu ensaio Sobre o Conceito de História, escreveu: “Há um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar de qualquer coisa que olha fixamente. Tem os olhos esbugalhados, a boca escancarada e as asas abertas. O anjo da História deve ter este aspecto. Voltou o rosto para o passado. A cadeia de factos que aparece diante dos nossos olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e lhas lança aos pés. Ele gostaria de parar para acordar os mortos e reconstituir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do paraíso sopra um vendaval que se enrodilha nas suas asas, e que é tão forte que o anjo já as não consegue fechar. Este vendaval arrasta-o imparavelmente para o futuro, a que ele volta as costas. Enquanto o monte de ruínas à sua frente cresce até ao céu. Aquilo a que chamamos o progresso é este vendaval.”
Sim, o progresso faz vítimas e assenta sobre vítimas, como, numa entrevista recente a José Manuel Vidal, Director de Religión Digital, veio relembrar, a propósito do seu novo livro, El tiempo, tribunal de la historia, o filósofo Manuel Reyes Mate, discípulo do filósofo e teólogo Johann Baptist Metz, que aqui referi recentemente, por ocasião do seu falecimento: “A História da Humanidade é uma história de progresso lento sobre muito sofrimento causado. O progresso mata e exige vítimas. Que sobre as vítimas se construiu a História sabemo-lo, mas tornámo-las invisíveis, no sentido de que não lhes demos importância.” E relembra também os tempos da sua juventude, com a esperança messiânica e dois messianismos. “O marxismo era um guia para muita gente. Hoje não é guia para quase ninguém, mas também não existe nada que o substitua, e há um grande vazio. O que agora existe é uma grande inesperança/desesesperança. Na altura, havia futuro: era uma sociedade que, apesar dos problemas, tinha futuro e tinha projectos de longo alcance, simbolizados pelo cristianismo e pelo marxismo. Hoje, a sociedade vive na e da imediatidade, sem projectos.” Deste modo, percebe-se o estado em que se encontra a política. “A política não tem apenas de resolver o dia a dia; tem de oferecer um horizonte de esperança à Humanidade. Mas, para isso, não pode renunciar às grandes perguntas. E as grandes perguntas têm a ver com a morte, com o sofrimento e com a injustiça. Na medida em que a filosofia política renuncia a essas perguntas, a política, como dizia outro marxista, Max Horkheimer, converte-se num negócio.”
E voltamos a Walter Benjamin, que não renunciou ao messianismo. Ele fala da teologia como “um anão feio e corcunda”, porque carrega com responsabilidades históricas, com erros e fracassos, mas ela não esquece as grandes perguntas. Precisamente por causa do sofrimento e das vítimas, se a injustiça não pode ter a última palavra sobre a História, é necessário fazer apelo à teologia, como reconheceram Max Horkheimer e Theodor Adorno, sendo, no entanto, Benjamin que insistiu em que a solidariedade com os mortos, concretamente com as vítimas inocentes, não permitia conceber a História “ateologicamente”, sem teologia.
A crise do nosso tempo manifesta-se essencialmente no esquecimento e obturação das grandes perguntas, decisivas, perguntas metafísico-religiosas. Assim, o que resta é uma cultura empobrecida e uma política reduzida a negócios, sem horizonte autenticamente humano. Depois, é o que se sabe, está à vista.
Anselmo Borges no DN