Frei Bento Domingues |
"Neste ano, cresceu muito o número dos amigos e familiares, o meu irmão Bernardo, com quem já não posso falar nem aguardar notícias"
1. Estamos a chegar ao fim do ano e continuamos dentro do mistério do tempo e dos seus enigmáticos sinais. Como não fui reler as crónicas de 2019, fico sem saber o que apontei, o que realcei o que me passou despercebido ou mal avaliado, assim como as esperanças e os receios que não se confirmaram.
Neste ano, cresceu muito o número dos amigos e familiares, o meu irmão Bernardo, com quem já não posso falar nem aguardar notícias. Continuarei a falar deles e, intimamente, a manter uma relação viva com aqueles que Deus não pode esquecer. É também com eles que rezo e, quando celebro a Eucaristia, convoco-os sempre a todos. Preciso desse mundo para continuar a viver. Já há muitos anos, uma jornalista perguntou-me o que desejava escrever como epitáfio sobre a sepultura. Respondi que, se alguém tiver essa triste ideia, escreva: não estou aqui.
Contaram-me que, numa aldeia do Norte, muito católica, morreu uma criança e todas as crianças foram ao funeral. De regresso a casa, uma perguntou à mãe: se eu morrer o que é que me acontece? O teu corpinho vai num pequeno caixão para o cemitério e a tua alminha vai direitinha ao céu, respondeu a mãe. E eu? Interrogou a criança!
Quando tenho de participar num funeral, lembro-me sempre de uma observação de Jesus perante a euforia dos discípulos ao regressarem entusiasmados de uma missão que tinha sido um êxito e que o Mestre confirmou. Acrescentou, no entanto, algo inesperado: alegrai-vos antes porque os vossos nomes, a vossa vida, está inscrita nos céus, no coração de Deus [1].
Conta o texto de S. Lucas que Jesus, naquele momento, estremeceu de alegria sob a acção do Espírito Santo. Havia um motivo para aquela comoção: durante séculos e séculos, os que se julgavam sábios e entendidos nas Escrituras tinham ocultado o essencial ao povo simples, “aos pequeninos”: bem-aventurados os olhos que vêem o que vós estais a ver. Pois eu digo-vos que muitos profetas e reis quiseram ver o que vedes e não viram, ouvir o que ouvis e não ouviram. Ocultaram-nos que somos misteriosamente amados de Deus, mesmo quando nos sentimos abandonados, como o próprio Jesus se sentiu na cruz. É este o cume da revelação cristã.
2. Está a chegar ao fim o centenário do nascimento de Sophia de Mello Breyner Andresen. Nunca foi uma figura esquecida. Neste ano, foram muitas as iniciativas para aprofundar e alargar o conhecimento da sua dimensão literária, cívica e política.
Com ela fiz parte da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos (CNSPP), fundada a 31 de Dezembro de 1969 – há 50 anos! – e que terminou em Abril de 1974, com o fim do regime e a libertação dos presos políticos [2].
Esta Comissão pedia muitas vezes a Sophia, a Fernando Lopes Graça e a mim próprio para intervir junto de alguns deputados da Assembleia Nacional. Era um momento, por vezes muito longo, para conversar não só sobre a situação dos presos políticos, mas também sobre a situação cultural do país e sobre os chamados “católicos progressistas”. Desse conhecimento nasceu também uma amizade. Fui, depois, convidado, bastantes vezes, para a mesa da família de Sophia.
A partir de determinada altura – nunca soube porquê – mandava telefonar, quase todas a semanas, a dizer que precisava de falar comigo com urgência. Sobre tudo isso, e muito mais, já o escrevi no JL.
Ao contrário de muitos distraídos, Richard Zenith afirma que as credenciais cristãs de Sophia são bem conhecidas e não é preciso procurá-las na sua biografia. Na poesia encontram-se repetidas alusões à sua fé, à sua oração e o amor pelas coisas visíveis não estava separado do Deus invisível. “Sophia parece ser uma poeta essencialmente religiosa. Como texto-chave para entendermos a natureza desta religiosidade, que repassa – como irei argumentar – a quase totalidade da sua poesia, proponho Ressurgiremos” [3].
O grande acontecimento do catolicismo português, neste ano, foi a celebrada canonização de Frei Bartolomeu dos Mártires, Arcebispo de Braga (1514-1590), aquele que, no Concílio de Trento, disse que os eminentíssimos cardeais precisavam de uma eminentíssima reforma. Para D. António Ferreira Gomes, toda a reforma será baldada se não incluir o desaparecimento da função cardinalícia [4].
3. Os votos destas crónicas, para 2020, são leituras de obras que surgiram, sobretudo no final deste ano.
Frederico Lourenço continuou a sua Bíblia monumental com o IV volume sobre os Livros Sapienciais. O Expresso teve a bela ideia, executada com beleza, de editar o Novo Testamento para Crentes e não Crentes. É recheado de reproduções de grandes pintores, arquitectos e poetas. Temas e Debates do Círculo de Leitores, para ajudar a leitura inteligente da Bíblia, publicou a tradução de John Barton, Uma História da Bíblia. O Livro e as Suas Fés.
A tradução do latim de Os dons do Espírito Santo, de Frei João de São Tomás (1589-1644), o Doutor Profundo, foi publicada pelas Edições Paulinas. É um acontecimento histórico a que terei de me referir no próximo ano. Rui A. Costa Oliveira, ao publicar a sua originalíssima Tese de Doutoramento, O Projeto “Portugal” e a relação Estado-Religião à luz da metáfora conjugal (Paulinas), ofereceu ao grande público um contributo fundamental para superar a ignorância muito divulgada.
Tomás Halík é um filósofo e um teólogo checo bem conhecido em Portugal. Acaba de ser traduzido um ensaio seu, Europa Ocidental e Europa de Leste: a experiência da dualidade europeia, em boa hora publicado pela Brotéria [5], sobre as consequências da globalização e sobre as relações entre religião e nacionalismo. “O Ocidente deveria oferecer às Igrejas dos países pós-comunistas a experiência de como manter a sua identidade numa sociedade aberta e pluralista”.
Bom ano, boa leitura e uma renovada esperança!
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Cf. Lc 10, 21-24.
[2] Espero que, no próximo ano, estas datas não sejam esquecidas.
[3] Cf. Frei Bento Domingues, O.P., Não eclipsar o mundo para encontrar o divino, in JL de 8 a 21 de Maio. 2019, p. 11; cf. também, Id. Sophia: Uma poesia do limiar, in Homenagem a Sophia de Mello Breyner Andresen, Actas (3 & 4 de Maio de 2000), pp.12-16; Richard Zenith, Uma cruz em Creta. A salvação sophiana, in Colóquio Letras, n.º 176 (Janeiro/Abril 2011), pp.38-45;
[4] Cartas ao Papa sobre alguns problemas do nosso tempo eclesial pelo Bispo Resignatário do Porto, Porto Figueirinhas, 1986, pp.242; 246-247.
[5] Brotéria 189 (2019) 520-546.