- As eminências e a eminentíssima reforma
"Tudo, na Igreja, tinha de estar ao serviço das populações, sobretudo dos mais pobres, que devem ser os preferidos da acção das dioceses, das paróquias e das ordens religiosas, varrendo todas as benesses, nepotismos e privilégios por mais antigos que se apresentassem. A narrativa pintada por Frei Luís de Sousa coloca todos os bispos frente ao espelho das suas responsabilidades sugeridas pela parábola do Bom Pastor. A leitura que Frei Bartolomeu fez da história da Igreja não o fixou apenas nas traições a erradicar, mas na recolha escrita de exemplos que a tradição viva oferecia como estímulo de alteração da vida dos próprios pastores"
1. Hoje, Frei Bartolomeu dos Mártires, da Ordem dos Pregadores (1514-1590), é canonizado em Braga e não ficava bem que esta grande festa fosse celebrada noutro lugar.
Ficou conhecido como “o bracarense” desde o permanente desassossego reformador que introduziu na última fase do Concílio de Trento (1545-1563) e mais bracarense se tornou na firme resistência à guerrilha que o poderoso Cabido da Arquidiocese desencadeou contra a efectivação do programa das reformas conciliares, pelas quais sempre lutou e das quais nunca desistiu.
O território da diocese de Braga era, na altura, o que está agora repartido por quatro dioceses: Viana, Braga, Vila Real e Bragança. É normal que comunguem todas da mesma alegria porque são todas herdeiras dos longos e pedregosos caminhos que Frei Bartolomeu percorreu, a pé ou na sua mula, por fidelidade ao lema episcopal que adoptara: arder e iluminar sem nunca se acomodar à desfiguração do mundo e da Igreja do seu tempo [1].
Conta Frei Luís de Sousa, seu exímio biógrafo [2], que numa das suas visitas pastorais de inverno descobriu num miúdo serrano a figura exemplar do bispo. “Ofereceu-se-lhe à vista, não longe do caminho, posto sobre um penedo alto e descoberto, ao vento e à chuva, um menino pobre e bem mal reparado de roupa, que vigiava umas ovelhinhas que, ao longe, andavam pastando. Notou o arcebispo a estância, o tempo, a idade, o vestido, a paciência do pobrezinho; e viu juntamente que, ao pé do penedo, se abria uma lapa que podia ser bastante abrigo para o tempo. Movido de piedade, parou, chamou-o e disse-lhe que descesse abaixo, para a lapa, e fugisse da chuva, pois não tinha roupa bastante para esperar.
– Isso não – respondeu o pastorinho – que, em deixando de estar alerta e com o olho aberto, vem o lobo e leva-me a ovelha, ou vem a raposa e mata-me o cordeiro.
– E que vai nisso? – disse o arcebispo.
– A mim me vai muito – tornou ele –, que tenho pai em casa que pelejará comigo; e tão bom dia se não forem mais que brados. Eu vigio o gado, ele me vigia a mim; mais vale sofrer a chuva.”
Esperou pelos que eram mais lentos no caminho e comentou: “E este esfarrapadinho ensina a Fr. Bartolomeu a ser arcebispo. Este me avisa que não deixe de acudir e visitar as minhas ovelhas, por mais tempestades que fulmine o Céu. Que, se este, com tão pouco remédio para as passar, todavia não foge delas, respeitando o mandato do seu pai mais do que o seu descanso, que razão poderei eu dar se, por medo de adoecer ou padecer um pouco de frio, desamparar as ovelhas, cujo cuidado e vigia Cristo fiou de mim quando me fez pastor delas?”
Com esta narrativa, Frei Luís de Sousa interpreta o sentido das lutas do Bispo com os responsáveis pelo sistema de abandono em que encontrou a sua vasta diocese e das radicais intervenções no Concílio de Trento e da santa teimosia contra as resistências que encontrou em Braga. Era toda a Igreja que precisava mudar, do topo até à base, a começar pelos eminentíssimos cardiais que precisavam de uma eminentíssima reforma.
Os bispos não podiam, como se tornara habitual, viver regaladamente dos bens das dioceses, longe dos diocesanos e os párocos longe das suas paróquias. Tudo, na Igreja, tinha de estar ao serviço das populações, sobretudo dos mais pobres, que devem ser os preferidos da acção das dioceses, das paróquias e das ordens religiosas, varrendo todas as benesses, nepotismos e privilégios por mais antigos que se apresentassem. A narrativa pintada por Frei Luís de Sousa coloca todos os bispos frente ao espelho das suas responsabilidades sugeridas pela parábola do Bom Pastor. A leitura que Frei Bartolomeu fez da história da Igreja não o fixou apenas nas traições a erradicar, mas na recolha escrita de exemplos que a tradição viva oferecia como estímulo de alteração da vida dos próprios pastores [3].
De facto, não é apenas a arquidiocese de Braga e as dioceses que dela brotaram com motivos para viverem a interpelação desta canonização responsabilizante. É toda a Igreja portuguesa, de norte a sul.
2. Em Lisboa nasceu, na Igreja dos Mártires recebeu o baptismo e o sobrenome. Entrou muito jovem para o antigo convento de S. Domingos, onde também depois ensinou teologia. Foi prior do convento de S. Domingos de Benfica. No belo convento de Santa Maria da Vitória, na Batalha, ensinou, por longos anos, filosofia e teologia. Em Salamanca foi coroado o seu Magistério teológico. Em Évora foi preceptor de D. António, Prior do Crato, e no convento de S. Domingos conviveu com o famoso Frei Luís de Granada que, ao lhe manifestar as novas correntes espirituais, descobriu em Frei Bartolomeu não apenas um mestre muito informado das tradições místicas, mas um seu austero praticante. Foi por influência deste amigo granadino que, muito contrariado e por obediência, aceitou ser bispo de Braga.
Pertenci ao grupo dos cépticos acerca da possibilidade de ver a canonização deste bispo depois de 400 anos de quase esquecimento.
Frei Raul Rolo, O.P. (1922-2004) tornou-se não só o grande especialista de Frei Bartolomeu dos Mártires – investigou tudo o que lhe dizia respeito – como um devoto obsessivo da causa que parecia perdida. Fez sobre ele a sua tese de doutoramento, editou-lhe as obras completas, criou o movimento bartolomeano, promoveu, em várias dioceses do país, jornadas de estudo e, no IV Centenário da sua morte, organizou um congresso internacional em que vários especialistas trouxeram novos contributos para o conhecimento do mundo e da Igreja em que Frei Bartolomeu viveu e lutou.
Frei Raul desejava tanto convencer os outros da sua devoção que ouvi em Roma, a um teólogo canadiano, este desabafo: “o grande milagre que levaria imediatamente Frei Bartolomeu aos altares seria o de conseguir calar este frade” [4]. Mas a perseverança é a alma da esperança contra toda a esperança.
3. Se o Bracarense tinha ficado tanto tempo esquecido, se não tinha o carisma milagreiro de Santo António, nem uma empresa eclesiástica interessada em reavivar a sua memória truculenta de reformador da cúria romana e das cúrias diocesanas, não seria o entusiasmo de um confrade que poderia criar um clima, cultural e espiritual, que refizesse a ponte devocional com uma figura tão controversa.
O Papa Francisco acabou por descobrir que Bartolomeu dos Mártires tinha vivido, na sua pessoa e na sua acção, o projecto da reforma da Cúria, do conjunto da Igreja e o tinha precedido no combate ao vírus do carreirismo eclesiástico. A sua vida foi um milagre.
Não era preciso esperar outro para o canonizar.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Romanos, 12, 2.
[2] Frei Luís de Sousa, A Vida de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, Imprensa Nacional, 1984, 76-77.
[3] Estímulo de Pastores (Stimulus Pastorum, 1565), 2017.
[4] Cf. Frei Bartolomeu dos Mártires, (1514-1590) Catálogo bíblio-iconográfico, Biblioteca Nacional, 1991; Frei Bartolomeu dos Mártires. Estudos – Textos – Documentos, Braga, 1990; IV Centenário da Morte de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, Congresso Internacional, Fátima, 1994