«Jesus já tinha rezado por todos os que o condenaram e maltrataram. Não tinha inferno para ninguém e deixou-nos uma missão: tirai as pessoas do inferno em que vivem.»
1. Anselmo Borges publicou, recentemente, dois artigos sobre A pena de morte e o inferno [1]. São duas peças notáveis de filosofia e teologia que é preciso meditar para perceber as razões que o levaram a dizer: Não há inferno. E, para explicitar mais o sentido dessa afirmação, remete para o livro editado pela Gradiva, Conversas com Anselmo Borges.
Antes de manifestar o prazer e o proveito que essa obra me ofereceu, gostaria de contar uma história que se passou comigo, numa aula de teologia, em Fátima, no âmbito dos Cursos de Verão do Instituto de S. Tomás de Aquino (ISTA).
Numa dessas aulas perguntaram-me se há ou não há inferno. Respondi que a minha esperança era nunca chegar a saber. Comentei, a brincar, que um amigo dizia que talvez existisse, pois sem ele os padres não tinham um instrumento forte para meter medo aos seus fregueses com a repetição cadenciada do estribilho dos sermões de Quaresma e de preparação para uma confissão assustada: sempre, nunca! Quem é condenado ao inferno, nunca de lá pode sair.
A resposta não caiu bem. Uma aluna indignada gritou-me: com coisas sérias não se brinca. O inferno existe. Nossa Senhora mostrou-o aos pastorinhos, junto da actual Capelinha das Aparições.
Tentei mostrar que acreditar em Fátima não fazia parte do credo da Igreja. É possível ser católico e não acreditar em Fátima. As impressões das criancinhas estavam condicionadas pelas figurações que aprendiam na catequese, nos sermões, nas conversas e orações das respectivas famílias. Nossa Senhora teria de lhes falar no imaginário e na linguagem que elas pudessem entender. As crianças também têm direito à imaginação e cada um à sua opinião.
Pior a emenda do que o soneto! A questão não arrefeceu: mas, então, as crianças viram ou não viram; Nossa Senhora mostrou ou não mostrou o inferno? Antes da aula terminar e depois de ter esgotado os meus recursos para sair daquela problemática, concluí: certamente nem os leigos nem os membros das congregações religiosas vieram hoje prevenidos de dinheiro. Lanço um desafio: vão para casa, conversem com quem possa ajudar e vamos fazer umas escavações no local em que, supostamente, foi mostrado o inferno. Se ele estiver lá, a gente vai encontrá-lo. Risada quase geral e, assim, terminou provisoriamente o inferno daquela aula.
2. O ISTA desenvolvia, nessa altura, várias iniciativas na linha e no ambiente criado por João XXIII e pelos debates teológicos ampliados pelo Vaticano II mal acolhido, em Portugal, pela hierarquia eclesiástica e política. Os seus professores estavam intimamente ligados à edição portuguesa da revista internacional Concilium a cuja direcção pertencia frei Mateus Cardoso Peres, actor importante da renovação da teologia moral.
Vivia-se, então, um clima de liberdade vigiada donde surgiam, no entanto, variadíssimas expressões e experiências. A própria Comissão Teológica Internacional publicou, em 1972, um célebre documento sobre A unidade da Fé e o Pluralismo Teológico do qual deixo, aqui, um fragmento: “Por causa da natureza universal e missionária da fé cristã, os acontecimentos e as palavras reveladas por Deus devem ser cada vez mais repensados, reformulados e revividos dentro de cada cultura humana, se se quer que forneçam uma verdadeira resposta às questões que estão enraizadas no coração de cada ser humano e que inspiram a oração, a adoração e a vida quotidiana do povo de Deus. Assim, o Evangelho de Cristo conduz cada cultura à sua plenitude e, ao mesmo tempo, submete-a a uma crítica criativa. As igrejas locais que, sob a direcção dos seus pastores, se aplicam a esta árdua tarefa da incarnação da fé cristã, devem sempre manter a continuidade e a comunicação com a Igreja universal do passado e do presente. Graças aos seus esforços, estas Igrejas contribuem tanto para o aprofundamento da vida cristã como para o progresso da reflexão teológica da Igreja universal e conduzem o género humano, em toda a sua diversidade, à unidade querida por Deus” (n.º 9).
Estava criado, aparentemente, o espaço para o surgimento de teologias contextuais a partir da própria exigência da inculturação da fé. Não eram só as expressões do confronto com a modernidade, mas também uma grande variedade de teologias: as da libertação, as africanas e asiáticas ou, como outros diziam, as teologias do Terceiro Mundo. O panorama real é muito mais vasto [2].
A esta “febre teológica” sucedeu uma época de suspeita em relação aos teólogos pouco alinhados com o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Os casos mais conhecidos foram os de B. Hearing, H. Küng, E. Schillebeeckx, L. Boff que passaram a ser ignorados em muitas faculdades de teologia.
Com essa operação ortodoxa, a teologia não ganhou nada. Não foi vencida a opção decidida pela modernidade, que privilegia a razão científico-técnica da racionalidade, não conseguiu entrar, como disciplina, no conjunto das ciências humanas, gerou uma desconfiança que se observa entre os cristãos em geral, entre alguns seminaristas, sacerdotes e religiosos. Os preconceitos anti-teológicos não foram vencidos mesmo quando surgem mais leigos a frequentar faculdades de teologia.
Há excepções. Quem se apresenta como licenciado ou doutorado numa área científica e simultaneamente teólogo causa algum espanto. Anselmo Borges, quando foi director da Revista Igreja e Missão, organizou vários Encontros Internacionais, onde possibilitou o confronto entre diferentes sensibilidades da área teológica e da área científica. Revelava uma sensibilidade muito mais ampla do que a sua condição de filósofo e teólogo.
O livro de entrevistas, Conversas com Anselmo Borges, tem a marca de um longo itinerário de convergências de vários mundos.
3. A liturgia deste Domingo celebra a festa de Cristo Rei. Sobre os motivos e as circunstâncias do monumento que lhe foi dedicado, em Almada, já escrevi em anos passados.
Lemos, hoje, no Evangelho de S. Lucas [3] o desenlace da aventura messiânica de Jesus: cravado numa cruz com o letreiro, “Este é o Rei dos judeus”. Isto depois de ser ridicularizado pelos chefes dos judeus, pelos soldados e até por um companheiro de infortúnio, censurado por outro que reconheceu em Jesus que nada estava terminado: “Jesus, lembra-Te de Mim, quando vieres com a tua realeza”. Jesus respondeu-lhe: “Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso”.
Jesus já tinha rezado por todos os que o condenaram e maltrataram. Não tinha inferno para ninguém e deixou-nos uma missão: tirai as pessoas do inferno em que vivem.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] DN online (10 e 17 de Novembro de 2019)
[2] Rosino Gibellini (ed.), La teologia del XX secolo, Biblioteca di teologia contemporanea, nº 69; Prosspetive teologiche per il XXI secolo, Biblioteca di teologia contemporanea, nº 123; Christian Duquoc, O.P., La théologie en exile. Le défi de sa survie dans la culture contemporaine. Bayar, Paris, 2006
[3] Lc 23,35-43