Aconteça o que acontecer,
o tabu em torno dos ministérios ordenados
perdeu o seu prestígio, o prestígio da ignorância.
1. O Sínodo Pan-Amazónico começou no passado dia 6 e termina hoje. Já é possível o acesso ao resultado dos debates dos diferentes grupos que nele participaram. Também já foi comunicada a proposta do documento final. No momento em que escrevo, ainda não a conheço. A sua discussão foi o trabalho da passada semana.
Lendo os textos dos diversos grupos, fica-se com a sensação de que o sínodo não foi mais do mesmo. Houve livre, verdadeira e corajosa discussão, como tinha pedido o Papa. Por sua natureza, o Instrumentum laboris era um documento “mártir”, destinado a ser destruído nos debates sinodais. Poder-se-á dizer que as propostas mais novas já vinham sendo debatidas em vários grupos e movimentos, sobretudo depois do espaço aberto por João XXIII e pelo Concílio Vaticano II. O que agora parece óbvio e urgente, do ponto de vista teológico e pastoral, foi a cruz de alguns teólogos e, em especial, de Edward Schillebeeckx, O.P., desde os anos 80 até à sua morte. Considerava-se um teólogo feliz. Nunca o conseguiram condenar, mas o cardeal Ratzinger perseguiu-o até ao fim.
Os três temas mais salientes nos grupos de trabalho, para além da questão básica e incontornável da ecologia, são: a autorização de um rito católico amazónico para viver e celebrar a fé em Cristo; mais responsabilidades para as mulheres na comunidade eclesial; e a possibilidade de ordenar homens casados [1]. Quanto ao primeiro ponto, faz parte de um longo trabalho de inculturação da liturgia ensaiado, com mais ou menos êxito, em vários países, embora a pluralidade de ritos não seja uma novidade na história da Igreja. No entanto, a proposta é mais abrangente. Sublinha o aspecto espiritual, teológico, litúrgico e disciplinar para exprimir a riqueza singular da Igreja Católica na Amazónia. Quanto ao segundo, as propostas não são muito ousadas. Infelizmente, ficam pela possibilidade da ordenação de mulheres diaconisas, uma ocasião perdida para não se discutir, em sínodo, uma outra possibilidade: a da ordenação presbiteral de mulheres. Ainda nos dias 16 e 17 deste mês se reuniu, em Lisboa, um movimento mundial a exigir este reconhecimento [2]. No terceiro, discutiu-se a possibilidade de ordenar homens casados, o que não aconteceu para as mulheres, sejam solteiras ou casadas. Na Igreja dos primeiros tempos, a condição mais frequente já era a de homens casados. O que mais se teima em desconhecer é o que está mais claro nos textos no Novo Testamento: foram elas, as Mulheres, as encarregadas por Jesus ressuscitado de evangelizar os próprios apóstolos, desanimados com a morte horrorosa do Mestre.
2. Se, no momento em que escrevo, ainda nem sequer conheço a proposta final entregue ao Papa, muito menos o que o Papa fará do conjunto dos debates que agitaram este sínodo. Seja como for, aconteça o que acontecer, o tabu em torno dos ministérios ordenados perdeu o seu prestígio, o prestígio da ignorância. Como todos os cristãos estão convidados por S. Pedro a dar razão da sua esperança e como, por outro lado, o debate se tornou público dentro e fora da Igreja, a discussão em ordem a decisões de prática pastoral vai continuar, sem motivo de falsos escândalos para ninguém. Aprofundar a Fé, sob o ponto de vista afectivo e cultural, deve ser o estatuto de todos os fiéis. Não é só matéria para teses de mestrado e doutoramento. A prática teológica especializada é uma exigência de toda a Igreja e para o serviço de toda a Igreja, não para engrossar a casta dos fariseus, sem misericórdia para os problemas das populações, religiosas ou não.
O Papa Francisco tem o carisma de meter o conjunto da Igreja em trabalhos. Não tem a mania que sabe tudo, não se guia pelos atributos da infalibilidade, porque acredita que pertence a toda a Igreja o dever de assegurar a fidelidade à presença do Espírito de Cristo, em todos os tempos e lugares. Não convoca reuniões para o ritual de repetir o que já foi feito no passado. Como diz Isaías: não penseis mais no passado, pois vou realizar algo de novo, que já está a aparecer: não o notais? [3]
3. Não basta dizer que a Amazónia, por questões climáticas, é fundamental para toda a humanidade. Sob o ponto de vista cristão, o que ali está a ser ensaiado deve repercutir-se nas Igrejas do mundo inteiro, se elas quiserem respirar estes novos tempos.
Para as pessoas e grupos económicos, políticos e religiosos, que viram com maus olhos a convocatória do sínodo e quiseram policiar e perturbar o desenrolar dos seus trabalhos, este dia do seu encerramento pode ser sentido como um grande alívio: sínodo realizado, sínodo amortalhado, um mau momento para esquecer. Aquele imenso território, com tantos recursos a explorar pelas multinacionais, não pode continuar nas mãos de povos atrasados e subdesenvolvidos.
O Papa abriu o sínodo a partir da sua própria experiência, confessando que, no seu próprio país, o slogan “civilização e barbárie” serviu para dividir e aniquilar a maioria dos povos originários, porque eram “bárbaros” e a “civilização” provinha de outro lugar. Acrescentou que o desprezo dos povos continua ainda hoje, na minha terra natal, com expressões ofensivas, ou então falamos de civilizações de segundo nível, as que vêm da barbárie.
Isto não fez perder, a Bergoglio, o humor certeiro e anticlerical: “Ontem fiquei desapontado por ouvir um comentário sarcástico sobre aquele homem devoto que levou as oferendas com penas na cabeça. Dizei-me: qual é a diferença entre colocar penas na cabeça e o ‘tricórnio’ usado por alguns oficiais nos nossos dicastérios? Assim, corremos o risco de propor medidas simplesmente pragmáticas, quando, pelo contrário, nos é pedida uma contemplação dos povos, uma capacidade de admiração, que façam pensar de forma paradigmática. Se alguém vier com intenções pragmáticas, que recite o ‘eu pecador’, que se converta e abra o coração a uma perspectiva paradigmática que nasce da realidade dos povos.” [4]
O sínodo realizou-se em Roma. A grande periferia veio para aquele lugar que se julgava o centro da cristandade. Não é uma extravagância, um gesto exótico, é a proclamação da nova realidade da Igreja e do mundo. Sejam quais forem as medidas de prática social ou pastoral, esta foi uma mensagem paradigmática: o centro da Igreja já não está em Roma, mas no coração dos Povos.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Sobre os temas, debates, entrevistas sobre o Sínodo aconselho o jornal online 7Margens
[2] Women's Ordination Worldwide (WOW). A proposta de Maria Julieta Mendes Dias para essa reunião é um exemplo do que se deve pedir, exigir a este grupo
[3] Is 43, 18-19
[4] Aconselho a leitura do discurso do Papa, na íntegra, no site do Vaticano, em Discursos (7.10.2019)