“Eu estou encantado com este Papa. Penso que ele é o Papa preciso para este momento da história do mundo”
Walter Kasper
1. No início do século XX, A. Loisy fez uma afirmação que é decisiva para a compreensão dos problemas dramáticos por que passa a Igreja: “Jesus anunciou a vinda do Reino de Deus, mas o que veio foi a Igreja”. Realmente, não se pode dizer que Jesus fundou a Igreja. Jesus é o fundamento da Igreja, mas não o seu fundador.
Jesus anunciou o Reino de Deus. E o que é o Reino de Deus? O próprio Jesus, na sua pessoa, na sua palavra, na sua vida, na sua morte e ressurreição. Ele é o Vivente em Deus para sempre. O que é que anunciou? Que Deus é Abbá, querido Pai, e também podemos e devemos dizer que é Mãe, Mãe querida. Como Pai e Mãe, Deus quer o bem, a alegria, a felicidade, a realização plena de todos os seus filhos e filhas e nem na morte os abandona: na morte, não se cai no nada, entra-se na plenitude da Vida. Foi essa fé que moveu Jesus, realizando, por palavras e obras, o Reino de Deus, o Reino da fraternidade, da paz, da solidariedade e da verdadeira liberdade, para todos, a começar pelos mais frágeis, abandonados, pobres, aflitos, marginalizados, desprezados, desvalorizados... Para Deus, todos valem infinitamente.
Muitos acreditaram em Jesus, cada vez mais homens e mulheres, através dos primeiros discípulos, foram acreditando nEle e, através dEle, em Deus, no Deus de Jesus. E foram surgindo comunidades cristãs fraternas no mundo inteiro, realizando o Reino de Deus. Nelas, o amor era a lei suprema: “vede como se amam”, diziam os pagãos.
Evidentemente, com o tempo, foi-se impondo a necessidade de uma organização mínima para essas comunidades, a que chamaram Igrejas, e, depois, para a Igreja toda, espalhada pelo mundo. Aí, foi-se instalando o perigo maior: a Igreja como organização foi sucumbindo, concretamente a partir de Constantino, à tentação de tornar-se uma instituição de poder cada vez mais poderosa, dominadora, centralizada, imperial. Contrariando a vontade de Jesus que tinha dito: “sois todos irmãos”, “quem quiser ser o maior torne-se servidor de todos”, seguindo o meu exemplo: “não vim para ser servido mas para servir”, a Igreja afirmou-se como hierarquia, com duas classes: clérigos e leigos, os que mandam e os que obedecem. A situação agravou-se com a reforma gregoriana e a romanização, como se lê no famoso Dictatus Papae, do Papa Gregório VII (século XI): “A Igreja romana foi fundada só por Jesus Cristo. Por isso, só o Romano Pontífice é digno de ser chamado universal. Só ele é digno de usar insígnias imperiais; ele é o único homem cujos pés todos os príncipes beijam.” Com esta concepção imperial surgiu também a corte, o fausto, as vestimentas de luxo (ainda hoje os cardeais são chamados os purpurados) e dignidades e títulos que Jesus não reconheceria: Eminência, Excelência Reverendíssima, Monsenhor, etc. E as celebrações da Eucaristia, que deveriam ser celebrações de família e em família, foram em parte substituídas por Pontificais, nos quais há muito dos rituais das cortes dos reis... O clericalismo e o carreirismo avançaram em crescendo e foi-se impondo um hierarcocentrismo, já que, como escreveu o Papa Pio X, fora da hierarquia, dos clérigos, o resto dos fiéis tem como única missão “aceitar ser governado e obedecer”.
2. O Concílio Vaticano II foi um dos acontecimentos mais importantes (para De Gaulle, o mais importante) do século XX, ao recentrar a Igreja em Jesus e no Evangelho. Mas essa Primavera foi curta, já que rapidamente veio o Inverno.
Para retomar a Primavera, chegou o Papa Francisco, um Papa cristão e um líder político-moral global, um dos mais influentes e mais amados, se não o mais amado. Não se esqueceu dos pobres; anuncia e faz caminhos a favor da justiça, da fraternidade e da paz, dos “três T”: tecto, terra, trabalho; combate o capitalismo desenfreado e desregulado, o ídolo que mata; é simples, humano, dá risadas, beija, consola, vai ao encontro dos desafortunados e entrega-lhes a esperança; insiste no diálogo ecuménico e inter-religioso; não condenou teólogos nem tolheu a liberdade de pensar a fé; não tem medo nem sequer da morte, porque tem fé e sabe que é amado por Deus... Anuncia por palavras e obras o Reino de Deus, a Boa Nova de Jesus, e quer que a Igreja — a Igreja são todos os baptizados — faça o mesmo. Por isso, declara que a corte, o clericalismo e o carreirismo são “a peste” do papado e da Igreja. Uma reforma funda da Cúria está a caminho, o mesmo acontecendo com o Banco do Vaticano.
Nuclear para a sua revolução são a descentralização e o caminho sinodal (caminhar juntos e em conjunto) da Igreja local e universal. Aí está o Sínodo para a Amazónia, um mini-Vaticano II, que abre hoje em Roma e estará activo até 27 deste mês. Dada a sua importância decisiva, pois será marca determinante deste pontificado, dedicar-lhe-ei a crónica do próximo Domingo.
É natural que Francisco tenha adversários, opositores e mesmo inimigos, dentro e fora da Igreja, que o acusam até de heresia. Forçam as acusações para que ele se demita. Mas ele não tem medo e não resigna. E também não há razões para temer um cisma. Como disse recentemente numa entrevista o cardeal alemão Walter Kasper, teólogo eminente, grande amigo e defensor de Francisco — “Eu estou encantado com este Papa. Penso que ele é o Papa preciso para este momento da história do mundo” —, “os que agitam o espantalho do cisma são pequenos grupos que estão abertamente contra o Papa, mas é preciso saber e ter em conta que são poucos, muito poucos, embora façam muito ruído”. Acrescentou: “O Papa continua a ter muitíssima força. Tem um dinamismo interior que o empurra para seguir adiante e não tem medo das críticas que circulam contra ele, inclusivamente dentro do mundo católico. Segue o seu caminho e está muito bem, mesmo fisicamente, para um homem de 82 anos. E a prova está em que continua a trabalhar incansavelmente.” E não há o perigo de voltar atrás?, perguntou o jornalista José Manuel Vidal. Resposta: “Penso que no próximo conclave não se pode eleger um Papa contrário. As pessoas não aceitariam. Não é possível a marcha atrás, não é possível. As pessoas não aceitariam isso, porque querem um Papa normal, humano e não um Papa imperial.”
Neste contexto, deve-se sublinhar a importância da criação, ontem, de novos cardeais, incluindo o português José Tolentino Calaça de Mendonça. Com essa criação, Francisco assegura a sua sucessão. De facto, a partir de ontem, a maioria dos cardeais eleitores foram nomeados por ele próprio: há agora 128, 67 criados por ele, 42 por Bento XVI e 19 por João Paulo II. Só que é decisivo, digo eu, que não se deixem levar por lóbis (o Papa também não gosta de lóbis) e sigam o bilhete de identidade dos cristãos, descrito por Francisco na igreja de Rakovski, Bulgária, num diálogo com crianças que tinham acabado de receber a Primeira Comunhão. Disse então: “o nosso documento de identidade” é este: “Deus é nosso Pai, Jesus é nosso Irmão, a Igreja é nossa família, nós somos irmãos, a nossa lei é o amor. E o nosso apelido é cristãos:”